Congresso debate relação entre Forças Armadas e governo
Pode sair do Congresso Nacional uma solução para o problema que, ao lado dos esforços de combate ao novo coronavírus, muito tem preocupado o oficialato. Pelo menos duas propostas de emenda constitucional podem amenizar os danos causados à imagem das Forças Armadas pela correlação feita, na opinião pública, entre os militares e o governo.
A ideia, ainda em fase inicial de tramitação e que pode ganhar impulso se for objeto de acordo entre os líderes partidários, é resguardar o caráter de instituições de Estado das Forças Armadas. Em uma eventual brecha na agenda legislativa voltada à retomada econômica no pós-pandemia, esse pode ser um debate positivo a ser levado adiante pelo Parlamento. O país ganhará, se demonstrar ter maturidade civilizatória para discutir esse tema sem enfrentar novas turbulências institucionais. Perderá quem quer trocar a farda pelo terno e a gravata, sem enfrentar uma transição profissional em definitivo.
Por isso a proposta de autoria da deputada federal Perpétua Almeida (AC), líder do PCdoB na Câmara, chama a atenção. Ex-assessora especial e ex-secretária de Produtos de Defesa do Ministério da Defesa, a deputada mantém contato com seus antigos interlocutores na caserna, enquanto coleta as assinaturas necessárias para protocolar a PEC. Antes um gesto trivial no cotidiano do parlamentar, agora a subscrição de projetos é eletrônica e enfrenta novas complexidades por causa do trabalho remoto e da pandemia.
A PEC, contudo, está pronta. Alteraria o artigo 37 da Constituição, que trata da administração pública: para exercer cargos de natureza civil nos três níveis da federação, o militar da ativa com menos de dez anos de serviço teria que se afastar da atividade. Se ele contasse mais de dez anos de serviço, passaria automaticamente para a inatividade no momento da posse. A deputada tem um ponto: dificilmente um militar que retornasse ao quartel não faria política ou deixaria de ser identificado com o governo para o qual serviu, caso assumisse um posto de comando.
Essa é base do texto a ser protocolado com objetivo de lançar um debate e que já desperta curiosidade nos quartéis. Nas discussões do relatório, explicou ela, devem ser detalhadas algumas exceções. Cargos na estrutura do Ministério da Defesa ou funções de Estado não exigiriam que seus eventuais ocupantes deixassem as Forças Armadas, por exemplo.
O deputado Alencar Santana Braga (PT-SP) propôs uma emenda constitucional com teor semelhante, mas neste caso alterando o artigo 142. É este o capítulo que trata especificamente das Forças Armadas e que lamentavelmente passou a estar no centro das turbulências institucionais.
Os danos à imagem dos militares já são palpáveis. Pesquisas de opinião pública captam queda na aprovação das Forças Armadas, até então acostumadas a baterem sucessivos recordes nos índices de confiança da população desde a redemocratização. As redes sociais também se mostraram um ambiente hostil para os perfis oficiais dessas organizações, que passaram a receber críticas em suas postagens tanto de eleitores do presidente quanto da oposição. Bolsonaristas reclamam da falta de apoio das Forças ao presidente, enquanto outros tantos se queixam justamente de uma suposta adesão do Exército, da Marinha e da Aeronáutica ao projeto político que venceu a eleição em 2018 e até chegou a entusiasmar segmentos da caserna.
Até parecia que poderia haver uma simbiose, mas desde o início do governo é crescente o desconforto da cúpula militar. Essa insatisfação chega hoje a patamares elevadíssimos, devido à conclusão de que representantes dos dois extremos da polarizada política nacional passaram a usar as Forças como elemento de suas narrativas. Não há expectativa de arrefecimento das tensões.
Nesse ambiente, dizem oficiais da ativa, não se verá posicionamentos públicos dos comandantes em relação à atuação dos Três Poderes ou do Ministério Público. Mas existem dois possíveis caminhos no horizonte e eles não são excludentes entre si.
O primeiro é as Forças manterem um foco absoluto em garantir o sucesso do combate à pandemia de covid-19, missão complexa, desafiadora e inédita para esta geração de oficiais. No Exército, desde a Copa do Mundo realizada no Brasil não se via uma atuação de todos os Comandos em conjunto todos os dias. Com a diferença de que desta vez a jornada tem sido muito mais longa e tortuosa, mas capaz de demonstrar à população a importância de se ter organizações militares preparadas para um emprego rápido e eficaz em períodos de crise.
A outra possibilidade colocada à mesa em conversas reservadas seria o ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, e o ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello, acelerarem a ida para a reserva. Ramos sinalizou à corporação que assinaria a papelada em breve, um gesto que estaria, na visão de colegas, mais condizente com seu papel de articulador político do Palácio do Planalto.
Na caserna, espera-se também que Pazuello deixe o Ministério da Saúde tão logo execute a missão emergencial que lhe foi designada ou então também tome o rumo à reserva, caso decida permanecer na função depois de superado os piores momentos da pandemia. Afinal, observam, Pazuello já é general de divisão e, por pertencer ao Serviço de Intendência, não teria mesmo como obter as quatro estrelas almejadas pelos integrantes das carreiras que podem chegar ao posto de general de Exército.
Se as discussões legislativas não avançarem com celeridade, restará mesmo aos oficiais tentarem convencer seus pares sobre o impacto que uma decisão individual pode ter sobre o todo.
Nesse esforço, podem surgir argumentos contemporâneos, como as pesquisas de opinião sobre a imagem das Forças, mas também os exemplos históricos. Um clássico é o caso do general romano Lucius Quinctius Cincinnatus, que foi convocado para resolver uma crise e, cumprida a missão, teve a oferta de permanecer no poder e na política. Preferiu voltar para casa e administrar sua fazenda.