Jamil Chade: Na ONU, o Brasil trai seus cidadãos para proteger os EUA das cobranças sobre racismo

Reunião do Conselho de Direitos Humanos previa investigação da polícia norte-americana, mas proposta não foi apoiada pelo |tamaraty. Temor de efeito bumerangue é evidente.
Foto: El País
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Reunião do Conselho de Direitos Humanos previa investigação da polícia norte-americana, mas proposta não foi apoiada pelo |tamaraty. Temor de efeito bumerangue é evidente

Num enorme salão da ONU, com capacidade para mais de 2.000 pessoas, uma reunião convocada em caráter de urgência em Genebra começou na última quarta-feira de uma maneira inusitada para os rígidos padrões de encontros diplomáticos: todos os embaixadores foram convidados a se levantar e respeitar um minuto de silêncio em memória do afro-americano George Floyd, morto nos EUA por um policial. Os embaixadores usavam máscaras. Alguns, por conta da pandemia. Outros, por conta da hipocrisia.

Tratava-se do Conselho de Direitos Humanos da ONU, um órgão acostumado a lidar com as piores atrocidades do planeta. Desta vez, ainda que o encontro fosse emergencial, o tema era o racismo, tão antigo quanto não resolvido, graças à impunidade que continua a imperar.

A proposta era clara: dar um sinal de basta às violações contra afro-descendentes e aproveitar do clamor das ruas para, finalmente, lidar com a brutalidade das polícias, principalmente nos EUA. Os autores do projeto, os países africanos, pediam a instauração de uma investigação internacional contra o governo americano. Se fosse aprovado, seria a primeira na história por parte de órgão da ONU contra Washington.

O encontro, portanto, ganhava uma dimensão histórica. Fosse pelo assunto sobre a mesa. Fosse pelo resultado que poderia trazer. Enquanto estátuas desabam em ruas e praças da civilizada Europa, era dentro de um prédio testemunha de manobras diplomáticas e da disputa pelo poder que um capítulo importante da luta pela igualdade poderia ser contado.

Antes de a palavra ser passada aos governos, a sala da ONU foi tomada por um segundo silêncio profundo quando o irmão de George Floyd, Philonise Floyd, fez um apelo para que governos “ajudem a trazer justiça” para afro-americanos.

Batendo no peito, ele insistia em mexer com aqueles representantes de todas as cores, credos e origens. “Meu irmão for torturado até a morte, no meio da rua”, disse. “O policial queria dar uma lição: vidas negras não importam nos EUA. Ninguém foi expulso até que protestos ocorreram. E quando protestos ocorreram, foram recebidos por uma polícia brutal. Foram silenciados e mortos”, afirmou Philonise. O mal-estar era evidente entre os engravatados diplomatas e embaixadoras sofisticadas.

Coube ainda a Michelle Bachelet, alta comissária da ONU para Direitos Humanos, colocar a morte do americano num contexto maior. “O ato de brutalidade gratuita (contra Floyd) passou a simbolizar o racismo sistêmico que prejudica milhões de pessoas de ascendência africana ―causando danos perversos, diários, de vida, geracionais e muitas vezes letais”, disse. “Os protestos de hoje são o culminar de muitas gerações de dor, e longas lutas pela igualdade. Muito pouco mudou, ao longo de muitos anos. Devemos aos que partiram antes, assim como aos que virão, aproveitar este momento, finalmente, para exigir uma mudança fundamental”, defendeu a ex-presidente do Chile. Ela, porém, alertou: condenar atos de racismo não é suficiente. “Devemos ir além e fazer mais”, insistiu. “A paciência se esgotou”, disse.

Um a um, governos tomaram a palavra. Entre frases ocas e prestação de contas para seu eleitorado, vários prestavam sua homenagem às vítimas da violência policial, enquanto outros insistiam como afro-descendentes estão fartos de tanta injustiça.

Resistência

Mas nem todos estavam de acordo com o projeto, principalmente os aliados de Donald Trump ou países que, com ex-colônias, sabiam que poderiam ser alvos de questionamentos também de práticas de racismo. Praticamente todo o grupo ocidental tinha um objetivo: forçar os africanos a abandonar a ideia de mencionar textualmente o Governo dos EUA no pedido de investigação. No lugar de um inquérito contra a polícia americana, a proposta era de que a resolução tratasse apenas do racismo em geral no mundo. Coube aos europeus uma das frases mais infelizes do encontro: “Precisamos olhar para nossas próprias almas”.

Ao ampliar o escopo da condenação, a tática era de transformar a resolução num documento vazio. Seria sobre “todos”. E sobre ninguém. Mas logo chegou a vez do Brasil falar. Seria a vez de escutar um país com uma enorme população negra, com uma profunda dívida social e com um histórico de colocar o combate ao racismo como centro de sua ação na agenda internacional de direitos humanos. À medida que o discurso enviado por Brasília ecoava naquela sala, não conseguia deixar de sentir uma profunda tristeza e náusea diante de um Governo que, uma vez mais, estava traindo seus próprios cidadãos.

O comportamento europeu não surpreendia, ainda que fosse lamentável. Mas as palavras do Brasil eram de uma violência profunda ao adotar uma postura de defesa velada do presidente Donald Trump, da polícia e da injustiça. Não houve nenhuma sinalização de solidariedade às vítimas. Nenhuma referência ao motivo do encontro. Apenas clichês sobre como o racismo era algo a ser combatido.

Mas o plano era outro: socorrer o aliado americano e socorrer a si mesmo. “O racismo não é exclusivo a nenhuma região específica”, afirmou a embaixadora do Brasil na ONU, Maria Nazareth Farani Azevedo. Segundo ela, trata-se de um problema “enraizado em diferentes partes do mundo, afetando uma ampla proporção da humanidade”. “Nenhum país deve ser singularizado nesse aspecto”, disse. Ou seja, não citem os americanos ou qualquer país no texto.

“É nosso dever falar contra o racismo. Espero que possamos fazer de uma forma que nos una e não que nos divida ainda mais, num mundo já polarizado”, defendeu. Fiquei pensando: mas por qual motivo lidar com o racismo nos dividiria? Salvo se a opção for a de ser conivente com o crime.

No Itamaraty, uma ala próxima ao chanceler defendia que o Brasil fosse contrário ao projeto. Pelo menos dois motivos estariam pesando. O primeiro deles se refere à aliança entre Brasília e a Casa Branca. Washington vem pressionando governos a barrar o projeto no Conselho de Direitos Humanos da ONU.

Mas o Governo brasileiro também temia que, se aprovada, a comissão de inquérito também poderia analisar o comportamento da polícia brasileira, alvo de duras críticas internacionais. No Planalto, a ideia de colocar em questão a atuação das forças policiais está fora de questão.

Uma noite de pressão

A reunião que começou na quarta-feira se arrastaria por dias. Durante uma noite de pressões, os autores da proposta foram obrigados a abandonar a ideia de uma comissão de inquérito contra os EUA. A quebra de braço envolvia temas distantes do racismo. A Casa Branca fez questão de chantagear aliados que ousassem votar em apoio dos africanos, inclusive ameaçando cortar recursos para programas de cooperação. A delegação sul-africana não escondia que as ameaças vindas de Washington eram reais.

Na ONU, há um mito: a de que todos os países têm um voto e que eles têm o mesmo mesmo. O que esse mito não conta é como o tal país chega a optar por um voto a favor ou contra uma resolução. Vulneráveis, os mais dependentes de ajuda externa simplesmente sucumbem ao poder dos grandes na hora de um voto determinante.

Por horas, os autores do projeto viveram um impasse. Alguns defendiam a manutenção do texto original, com referências aos EUA. Mas a pressão financeira era insustentável para muitos.

Uma versão intermediária do texto, assim, foi desenhada. Nela, o nome de George Floyd seria mencionado, para salvar a imagem dos governos na votação. Mas a comissão de inquérito seria eliminada. Em seu lugar, apenas um pedido para que a burocracia da ONU elaborasse um “informe” sobre a situação do racismo sistêmico no mundo e a violência policial.

Para a Casa Branca, isso ainda não era suficiente e a pressão continuou, até que o nome do país fosse removido. E assim ocorreu. Quando o texto foi submetido à votação, ele passou a ser ameaçado de se transformar em uma resolução para emoldurar e pregar na parede, sem qualquer impacto real para a vida de milhões de pessoas.

Jamil Dakwar, diretor do Programa de Direitos Humanos da American Civil Liberty Union, não escondia sua indignação. “É absurdo que a resolução final aprovada pelas Nações Unidas não faça menção aos Estados Unidos, onde a polícia mata pessoas, particularmente negros, a taxas alarmantemente mais altas em comparação a outros países desenvolvidos”, afirmou.

“A ONU precisa fazer seu trabalho ―e não ser intimidada― e responsabilizar os Estados Unidos. O país deve enfrentar um escrutínio global independente por sua opressão sobre o povo negro”, disse. John Fisher, da Human Rights Watch, optou pela esperança. “Embora ficando bem aquém do inquérito internacional abrangente exigido por centenas de organizações da sociedade civil, a resolução trará as importantes questões do racismo sistêmico e da violência policial nos Estados Unidos sob escrutínio internacional pela primeira vez, ao mesmo tempo em que abordará o racismo sistêmico e a violência policial em outros lugares”, disse.

Para ele, os esforços dos Estados Unidos para evitar a atenção do Conselho “apenas destacam por que esse exame é necessário, e até onde ainda há que ir para desmantelar as estruturas perniciosas do racismo institucionalizado”.

“Nenhum Estado, por mais poderoso que seja, deve ser isento do escrutínio do Conselho, e a resolução de hoje abre a porta para trazer maior atenção internacional às violações tanto por parte dos EUA quanto de outros Estados poderosos no futuro”, disse.

No Brasil, o tom também foi de esperança por parte dos ativistas, principalmente por conta do papel que a resolução pode ter para garantir que o tema da violência policial seja colocada de uma vez por todas na agenda da ONU. Também foi comemorada a referência explícita ao ressurgimento do neo-fascismo.

Wania Sant’anna, representante da Coalizão Negra de Direitos e vice-presidente do Conselho Curador do IBASE, afirma ter ficado satisfeita por conta dessa perspectiva.

O texto, esvaziado, foi aprovado por consenso. Mas, momentos depois, foi a vez de governos ocidentais tomarem a palavra para alertar que não aceitarão que Bachelet examine o caso de Floyd. A UE, por exemplo, insistiu que não haveria motivo de a ONU mergulhar no assunto se ele já estava sendo tratado nos EUA. O governo da Austrália adotou a mesma postura, indicando que a ONU terá de fazer um exame “amplo”. Ou seja, sem citar países.

Naquela sala, diplomatas se felicitavam por ter chegado a um acordo para salvar a reputação de todos. Os governos africanos diriam que fizeram sua parte. Os Ocidentais usariam o papel para dizer que o combate ao racismo é uma prioridade. Só se esqueceram que o texto corre o risco de nada mudar na vida de milhões de pessoas.

E o apelo do irmão de Floyd por uma comissão de inquérito? Ele pode esperar. Afinal, já esperaram por tantos séculos, golpeados por ataques contra sua dignidade.

O Ocidente e o Governo brasileiro conseguiram aprovar uma resolução para mostrar ao mundo que estavam comprometidos a agir. Mas desidratada o suficiente para não representar uma ameaça imediata.

Contra a força das ruas e as imagens de um assassinato em uma democracia, o Brasil e outros optaram por um apoio velado ao opressor. E, com seu joelho, não apenas deixava Floyd pela segunda vez sem ar. Mas esperam perpetuar o crime contra sua própria população negra, ignorada a cada dia, abandonada em sua suposta alforria e asfixiada pelo discurso diplomático e repleto de brutalidade.

Diante de todo o mundo e com interpretação nas seis línguas oficiais da ONU, Floyd foi uma mais uma vez asfixiado.

Jamil Chade é correspondente na Europa desde 2000, mestre em relações internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais de Genebra e autor do romance O Caminho de Abraão (Planeta) e outros cinco livros.

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