Raul Jungmann: Agonia e morte do Sistema Nacional de Segurança Pública

Em algum arquivo do Palácio da Justiça em Brasília jazem o Sistema Nacional e a Política Nacional de Segurança Pública/Susp, ambos tornados lei por decisão soberana do Congresso Nacional, e que esta semana completariam dois anos de vida.
Foto: Ministério da Justiça
Foto: Ministério da Justiça

Em algum arquivo do Palácio da Justiça em Brasília jazem o Sistema Nacional e a Política Nacional de Segurança Pública/Susp, ambos tornados lei por decisão soberana do Congresso Nacional, e que esta semana completariam dois anos de vida.

Aprovado em junho de 2018, o Susp tem uma longa história que se inicia, como proposta, no primeiro governo Lula, e torna-se lei no governo Temer.

Saudado como um histórico avanço no combate à violência e à insegurança, o Susp veio corrigir uma falha que nos acompanhava desde nossa independência enquanto nação. Afinal, da primeira das nossas sete constituições – de 1824, até a última, de 1988 -, jamais o poder central, no Império ou na República, teve atribuições constitucionais na área da segurança pública.

O que significa dizer que jamais tivemos um sistema ou uma política nacional de segurança pública. Em contrapartida, o crime organizado de há muito se nacionalizou e transnacionalizou, enquanto a segurança pública permaneceu uma atribuição dos estados, segundo a Carta de 1988, artigo 144.

Promulgada a Lei do Susp em outubro de 2018, reunimos, em sessão inaugural, o Conselho Nacional de Segurança Pública que discutiu e formalizou a primeira Política Nacional de Segurança Pública (PNSP) – ambos, Conselho e Política, exigências da lei que criou o Sistema Único.

Iniciado o atual governo, em janeiro do corrente ano e extinto o Ministério da Segurança, refundido ao Ministério da Justiça, este então envia, cinco meses após, em maio de 2019, a PNSP para análise da Controladoria Geral da União (CGU). Esta sentencia, em agosto, que em linhas gerais, a PNSP padeceria das mesmas fragilidades dos planos anteriores: genérico; em desalinho com os objetivos da Política; com uma carteira numerosa de projetos (não necessariamente articulados entre si), com ações pontuais e fragmentadas; planos de difícil replicação pelos entes federados; sem elementos gerenciais mínimos (estratégias, responsáveis, prazos, indicadores e metas); e governança de complexa coordenação.

A impressão que fica é que a CGU não entendeu a PNSP, ao lhe cobrar respostas ex-ante para questões que ela se propõe a responder após implantada.

Ora, a prioridade número um da PNSP é justamente o programa de superação do déficit de dados e indicadores e de padronização do registro de ações e projetos, que deveria ter sido realizado com o auxílio do Banco Mundial, o que foi suspenso pela atual administração. Ela enfatizava a necessidade de ações voltadas à realização de diagnóstico dos recursos existentes e das necessidades decorrentes para o pleno atendimento do Susp.

O que se traduz em ações voltadas à identificação de metas interinstitucionais e à criação de grupos de trabalho operacionais, envolvendo áreas técnicas de diferentes órgãos, para garantir os resultados que envolvem múltiplas instituições e poderes.

Em resumo: o que era um trabalho em construção foi interrompido, a título de não estar consolidado; o que demandava adoção de medidas imediatas para a superação de dados inconfiáveis e elaboração de modelos de definição de prioridades, acompanhamento de execução e avaliação de metas foi ignorado; o que se revelava urgente, foi tornado desimportante: instalar o Sistema Nacional de Acompanhamento e Avaliação das Políticas de Segurança Pública e Defesa Social, o Sinaped, a efetividade do Conselho Nacional, promover a aproximação com estados e municípios e critérios claros e bem executados de aprovação de projetos, acompanhamento de execução e avaliação de resultados de programas e projetos.

Ou seja, tudo ficou como estava, com enorme prejuízo para a efetividade, a eficiência e a economicidade e, o que é mais grave, para a transparência.

Supondo que essa consulta à CGU fosse de fato necessária, ela ficou disponível desde agosto de 2019, portanto há oito meses e, segundo o cronograma, o “Novo Susp”, deveria ter entrado em operação em fevereiro de 2020, após audiência pública. Desde então, passados quatro meses, isso não aconteceu. Nesse período, o Conselho Nacional de Segurança Pública reuniu-se apenas uma vez, em lugar das seis previstas.

Integrado pelo Ministério Público, Judiciário, Forças Armadas, polícias civil e militar, Polícia Federal, universidades, entidades civis, guardas municipais, ONGs, representantes das categorias profissionais afins e bombeiros, o Conselho é a maior e mais ampla força-tarefa jamais formada para reunir esforços de todos os poderes, da União, estados e municípios e da sociedade para combaterem homicídios, violência e insegurança.

O Sinaped, auditoria interna e independente do Susp, jamais se reuniu para enfrentar a obscuridade e o apagão de dados vigentes na área da segurança, avaliar programas, resultados, dados e informações e dar ao país uma radiografia do setor. A Ouvidoria Nacional, assim como a Corregedoria Nacional das Polícias, com poder de supervisionar todas as corregedorias estaduais das polícias, jamais foram implantadas.

E os conselhos estaduais e de segurança, que deveriam ser instalados em todos os estados e municípios, verdadeira espinha dorsal de uma rede nacional de coletivos envolvendo toda a sociedade e o poder público numa ampla coalisão pela vida e contra a violência, seguem inexistindo, afora inciativas de alguns estados.

Desenvolvida com a participação da sociedade civil, objeto de amplas discussões na Câmara e no Senado da República, na academia e órgãos públicos de todos os níveis, a PNSP tinha por foco, dentre outros, os homicídios, a juventude vulnerável, a reforma e aprimoramento das nossas polícias, o enfrentamento da tragédia do nosso sistema prisional, uma nova política de combate a drogas e a produção de dados e estatísticas sobre nossa segurança como jamais tivemos, além de metas para cada uma dessas ações que pudessem ser por todos avaliadas.

Noutro nível e em articulação com o programa Pro-Segurança do BNDES, com dotação de R$ 40 bilhões em cinco anos (encerrado), e os recursos das loterias esportivas da CEF para o Fundo Nacional de Segurança Pública (contingenciados), era grande a expectativa de enfim iniciarmos um novo tempo de crescente segurança para todos os brasileiros. Infelizmente, não foi assim.

Hoje, é com imensa tristeza que vemos os homicídios, que vinham despencando desde 2017, voltarem a crescer 11% em 2020, ceifando vidas e levando sofrimento e dor as suas famílias, enquanto toda uma política democrática de controle de armas e munições vai sendo destruída.

Dois anos são passados desde a criação pelo Congresso Nacional do Sistema Único de Segurança Pública. Dois anos perdidos, nada foi implantado. Triste réquiem para a mais ambiciosa e abrangente Política em defesa da vida e contra a violência já gestado em nosso país.

*Raul Jungmann, ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.

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