Se obtiver o registro de advogado, Moro poderá entrar no lado claro da cena
Há quem não entenda por que muitos não querem partilhar manifestos pela democracia com Sergio Moro. Propomo-nos a explicar.
Enquanto juiz, o ex-ministro comprometeu parte dos processos da Lava Jato com ilegalidades que os reduziram ao arbítrio e à perseguição política: selecionar alvos, grampear advogados, abusar das prisões temporárias, usá-las para arrancar confissões, articular acusações e provas em conluio com procuradores, acusar e julgar, proferir sentenças sem conectar fundamentos lógicos, manipular a imprensa e a opinião pública e influenciar a eleição presidencial em benefício do grupo ao qual se integrou. É o que mostram os registros dos processos, da imprensa, do site The Intercept e de recursos em andamento no Supremo.
Cabe ao juiz julgar e valer-se do poder coercitivo do Estado para garantir a execução do que decide. Esse poder é exercido pela força física e uso das armas, um monopólio oficial que está na base da organização da sociedade. Por sua gravidade, à coerção se contrapõe ao sistema de garantias constitucionais que configuram o devido processo legal. Ao desrespeitar esse sistema, na sua dimensão política e funcional o juiz corrompe a ordem jurídica; como indivíduo, é um algoz que age com covardia frente a quem não possui as mesmas armas. Um não juiz, que impõe condenações baseadas em fraudes processuais, imputações falsas e atos tão socialmente danosos quanto os crimes que declara combater.
Se atendeu a claras exigências da sociedade, a Lava Jato, como uma “deep web”, mergulhou em um lado escuro onde as deformações do processo, o comércio de delações e as ações ocultas de autoridades criaram um espaço sem controles e conhecimento público. Isso não é outra coisa que não um ataque às bases essenciais da organização social.
A experiência dos advogados com o processo judicial mostra o quanto é necessário para o equilíbrio das instituições e o quanto depende da conduta do juiz. Nos processos em que a União foi condenada por crimes da repressão do regime de 1964, nos casos Herzog e Fiel Filho, juízes federais operaram de modo correto esse sistema frente a um Estado onipotente, com o objetivo de garantir a ordem constitucional. Seria extraordinário que os processos de combate à corrupção correspondessem a esse ideal e não contivessem aquelas máculas —e a Lava Jato não deixasse como legado a ilusão de que, frente à corrupção, só há eficácia no despotismo de juízes e procuradores em processos sem regras.
Em confronto com o governo ao qual se associou, Moro exige respeito a princípios que, como juiz, ocultou no lado escuro do arbítrio e da prepotência. Esse respeito é devido, mas na defesa da democracia não há espaço a compartilhar com quem a devasta. Ainda assim, o ex-juiz, se desejar obter seu registro legal como advogado, será protegido pelas garantias constitucionais que negou a quem antes julgou. Poderá entrar no lado claro da cena, mas deixando na porta e esquecendo no passado as armas que não poderá usar mais.Samuel Mac Dowell de Figueiredo e Marco Antônio Rodrigues Barbosa
* Advogados, são fundadores do escritório Rodrigues Barbosa, Mac Dowell de Figueiredo, Gasparian – Advogados