Portal do Ministério da Saúde exclui número total de infectados pelo novo coronavírus e acumulado de óbitos no país desde o início da pandemia. Secretários de Saúde, Judiciário e entidades da sociedade civil criticam omissão de dados: “Tragédia”, classifica ex-ministro Mandetta
O Ministério da Saúde do Governo Jair Bolsonaro apagou de sua plataforma oficial os números consolidados que revelavam o alcance do novo coronavírus no Brasil, provocando críticas imediatas dos demais Poderes e da sociedade civil organizada. Depois de ficar horas fora do ar nesta sexta-feira, o site oficial foi republicado neste sábado, entretanto, somente com as notificações registradas nas últimas 24 horas. Não constam mais o número total de pessoas infectadas pelo vírus Sars-Cov-2 no país desde o início da pandemia, nem o acumulado de óbitos provocados pela covid-19 no território brasileiro. Também foram apagadas do site as tabelas que mostravam a curva de evolução da doença desde que o Brasil registrou seu primeiro caso, no final de fevereiro, e gráficos sobre infecções e mortes por Estado. Na noite deste sábado, seguindo essa política, o Ministério da Saúde divulgou 904 óbitos notificados e 27.075 casos confirmados da doença nas últimas 24 horas. A reportagem somou os números ao computado até a sexta-feira, totalizando em 35.930 óbitos e 672.846casos da doença em todo o país.
A ocultação dos dados já havia sido realizada nesta sexta-feira, quando o Governo excluiu as informações do boletim epidemiológico diário. Mas a mudança da plataforma é mais um passo firme rumo ao apagão de conhecimento sobre a real amplitude da crise sanitária do Brasil ―que é o segundo país no mundo em infecções (atrás apenas dos EUA) e o terceiro em mortes (atrás dos Estados Unidos e Reino Unido).
O presidente Bolsonaro defendeu a mudança na comunicação sobre a covid-19 no Brasil. “Ao acumular dados, além de não indicar que a maior parcela já não está com a doença, não retratam o momento do país. Outras ações estão em curso para melhorar a notificação dos casos e confirmação diagnóstica”, publicou o mandatário, em seu Twitter. A suspensão da comunicação acontece na mesma semana em que o Ministério da Saúde passou a atrasar em cerca de cinco horas a distribuição dos boletins, para às 22h, horário depois do fim do Jornal Nacional e depois do horário de fechamento das edições impressas dos principais jornais do país. “Acabou matéria do Jornal Nacional”, afirmou Bolsonaro ao ser indagado sobre a estratégia.
Além da supressão de dados sobre a doença, o Ministério da Saúde tornou cada vez mais raras as entrevistas coletivas técnicas, em que profissionais da pasta esclareciam dúvidas de jornalistas sobre a pandemia. A pasta argumenta que o atraso nos boletins visa “evitar subnotificação e inconsistências”, por isso, diz que “optou pela divulgação às 22h, o que permite passar por esse processo completo. A divulgação entre 17h e 19h, ainda havia risco subnotificação. Os fluxos estão sendo padronizados e adequados para a melhor precisão”, completou.
Sem a notificação oficial dos dados acumulados da doença, os números brasileiros sobre o novo coronavírus desapareceram, por algumas horas, também da plataforma da Universidade Johns Hopkins, dos Estados Unidos, que monitora desde o princípio o avanço do vírus, em 188 países ―e cujos dados são utilizados inclusive pelo EL PAÍS para monitorar a evolução da pandemia.
O ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, chamou de “tragédia” a omissão dos números, ao que atribuiu à uma “lealdade militar burra”. “É uma tragédia o que a gente está vendo agora, o desmanche da informação”, disse. O ex-ministro comparou a mudança à uma missão militar para “sonegar as informações, colocá-las em horário inacessível, ou rever, torturar os números para que eles confessem verdades que eles entendam que sejam as que melhor se encaixam para o momento”, continuou. “Não informar corretamente significa que o estado pode ser mais nocivo do que a doença”, disse ele neste sábado, ao participar de um evento sobre saúde pública.
Mandetta foi demitido por Bolsonaro, por discordar do presidente sobre o uso da cloroquina para tratar pacientes com a doença e sobre a flexibilização das medidas de isolamento social, medidas exigidas por Bolsonaro. Depois dele, assumiu o oncologista Nelson Teich, que pediu demissão um mês depois pelos mesmos motivos de Mandetta, em 15 de maio. Desde então, o Ministério da Saúde está sob o comando do general Eduardo Pazuello, ministro interino.
“A manipulação de estatísticas é manobra de regimes totalitários. Tenta-se ocultar os números da #COVID19 para reduzir o controle social das políticas de saúde. O truque não vai isentar a responsabilidade pelo eventual genocídio”, reclamou o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes, em sua rede social, neste sábado.
Proposta de recontagem de mortos
Além da mudança e atraso nos boletins e da ocultação de informações da plataforma da covid-19, a declaração do empresário Carlos Wizard, convidado por Pazuello para assumir a Secretaria da Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (do Ministério da Saúde), de que o Governo vai recontar os mortos da covid-19 nos Estados provocou revolta entre as secretarias estaduais de Saúde. “Tinha muita gente morrendo por outras causas e os gestores públicos, puramente por interesse de ter um orçamento maior nos seus municípios, nos seus estados, colocavam todo mundo como covid. Estamos revendo esses óbitos”, afirmou ao jornal O Globo, no sábado.
“A tentativa autoritária, insensível, desumana e antiética de dar invisibilidade aos mortos pela Covid-19, não prosperará”, criticou o Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (Conass), em nota publicada neste sábado, como reação às declarações de Wizard. “[A fala] Insulta a memória de todas aquelas vítimas indefesas desta terrível pandemia e suas famílias”, completou o Conass.
“As medidas contrariam a Constituição Federal, a Lei de Acesso à Informação, as boas práticas de transparência pública reconhecidas internacionalmente e evidenciam, mais uma vez, o espírito antidemocrático do governo de Jair Bolsonaro”, repudiou a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji). “A Abraji repudia o abuso de autoridade por parte do alto escalão do governo federal e condena tentativa de impor obstáculos às atividades jornalísticas através da ocultação de informações de interesse público. Também apela aos demais poderes da República para que fiscalizem e punam eventuais atos de improbidade administrativa com o máximo rigor da lei”, completou a entidade, em nota. “A transparência de informação é um instrumento poderoso no combate à epidemia”, criticou Paulo Jerônimo de Sousa, presidente da ABI (Associação Brasileira de Imprensa), em nota na qual acusa o governo de “tentar silenciar a imprensa tarde da noite”.
A ocultação dos dados pelo Governo não deve, entretanto, passar incólume. De acordo com o G1, a Defensoria Pública da União (DPU) ingressou com um pedido de liminar na Justiça Federal de São Paulo para que o Governo volte a divulgar os dados sobre a pandemia integralmente. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) afirmou ter feito um “apelo” ao ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Jorge Oliveira, para que o Governo “restabeleça a transparência”. Já o ministro Bruno Dantas, do Tribunal de Contas da União (TCU), também afirmou que estuda propor que seja estabelecido um horário limite para que os Estados e o Governo federal divulguem os dados.
Enquanto isso, nas redes sociais, a comparação entre Bolsonaro e o norte-coreano Kim Jong-Un dispararam ―a Coreia do Norte não divulga seus mortos pelo novo coronavírus e o nome do país era trending topic mundial justamente pela comparação entre os dois líderes. “Agora será padrão Kim Jong-Un? O ditador da Coreia do Norte decidiu que ninguém morreu de Covid19 no seu país. Funciona assim em ditadura”, escreveu o jornalista Guga Chacra.