A legitimidade da democracia representativa foi posta em xeque desde, no mínimo, Jean-Jacques Rousseau e, enquanto esse mestre viver entre nós, ela será sempre duvidosa. Aparentemente, portanto, os detratores da democracia parlamentar estão em boa companhia, e a defesa do exercício direto e imediato da soberania popular parece ser louvável (aqui deixaremos de lado um relevante “esquecimento” dos defensores da democracia direta: a democracia moderna é uma democracia com Estado). Mas essa aparência se desfaz quando alguns defensores da democracia direta definem as ruas como o espaço público privilegiado para a expressão da soberania do povo. Pode-se defender essa ideia, mas forçosamente deve-se abandonar não apenas Rousseau como também as experiências históricas de democracia direta, porque tanto estas como aquele nos ensinam que a soberania popular é uma instituição política que se exerce no interior de outras instituições políticas.
Não se deve esquecer de que o povo é uma instituição da política. Claro, outros fatores como história, língua, costumes, etc. participam da composição de um povo e concedem-lhe o colorido único, mas ele, enquanto autor das decisões coletivas, é instituído pela política, que pode “desinstituí-lo” também. Não deixa de ser irônico que entre os defensores da democracia direta haja quem negligencie as instituições políticas, como se o Povo fosse um dado “natural”. O povo como Soberano não é anterior à democratização da política, e tanto as democracias diretas que existiram concretamente quanto a idealizada por Rousseau foram politicamente instituídas: sabe-se quando se, e quem, instituiu o “demos”; a República de Rousseau nasce de um contrato. E mais, seja nas democracias diretas empíricas, seja na idealizada, o soberano popular encarna apenas e somente apenas na assembleia geral, porque aí e somente aí eram discutidas e depuradas as várias opiniões sobre o interesse comum. Na polis ateniense os cidadãos individuais encontravam-se nas praças para discutir os assuntos públicos, mas o “demos” só se manifestava na Eclésia, outra instituição política.
Nas avenidas das cidades contemporâneas vê-se uma multidão fazendo reivindicações, não uma assembleia onde se discute o interesse geral; as discussões travadas no interior das “sociedades parciais” também não forjam a vontade geral. Nem nas democracias diretas que existiram nem na de Rousseau as manifestações populares proferindo “palavras de ordem” eram tidas e havidas como expressão da soberania popular, mesmo porque as manifestações desse tipo são encontradas também nas aristocracias e monarquias absolutas; a democracia, direta ou representativa, é o regime das instituições; manifestações populares fazem parte dela e até podem enriquecê-la, mas não são idênticas a ela, portanto, não podem substituí-la.
Jogar parcelas da população contra as instituições da democracia parlamentar pode fazer sentido para os movimentos que fazem da luta política um fim em si mesmo, ou seja, que lutam pela luta; nesse caso, as instituições, que regulam e estabilizam as relações dos indivíduos e grupos, tornam-se um estorvo, uma verdade bem conhecida pelo fascismo.
O movimento bolsonarista é adepto da luta pela luta. Nele não se consegue vislumbrar nenhum objetivo utilitarista ou um fim moral, ou uma desejável combinação de ambos. Não se está aqui classificando o bolsonarismo como fascista, todavia não se pode deixar de enxergar nele alguns dos elementos cujo conjunto caracteriza o fascismo: as ações assentadas sobretudo na intuição em vez de se basear principalmente na razão e/ou na experiência; o voluntarismo exagerado (eles não negam os fatos adversos, contudo acham que podem vencer pela Vontade os obstáculos, não importa a que custo humano); o descaso com interesses utilitaristas (existe a preocupação com a economia – incluindo a agricultura, o turismo, a infraestrutura e os temas sob o guarda-chuva do Ministério da Economia –, mas ela é secundária em relação à questão ideológica; esta é defendida ainda que possa trazer prejuízos econômicos, aliás, essa característica evidencia que não passa de pura retórica a propalada preocupação com o bem-estar de “coletivos” nacionais, como a “Nação” brasileira, o “Estado” brasileiro ou o “Povo” brasileiro, pois relevante é a luta contra uma “conspiração universal”, vagamente definida); a paixão pela luta em si mesma (o inimigo escolhido – o “marxismo cultural” – é suficientemente indefinido e fluído para a luta não cessar nunca; a mobilização então pode ser permanente, porque os disfarces do inimigo são muitos); o apreço pela violência (a agressão física, ou ameaça de empregá-la, não é avaliada como recurso último, que pode ser necessário porém nunca é honroso, da política, mas como seu meio principal e honorífico). Evidente, nada disso impede que eles possam desfrutar as benesses a que o poder dá acesso, inclusive o enriquecimento pessoal.
Essas características levam a duvidar de que, não obstante as “palavras de ordem” das “franjas” bolsonaristas, o núcleo duro da facção seja defensor de fato de uma ditadura militar, porque essa poderia representar o fim do movimento bolsonarista, e é o “movimento” em si – no sentido de manter seu público interno em permanente estado de mobilização para acompanhar as metamorfoses do inimigo, sempre sorrateiro – que interessa ao núcleo central. As humilhações impostas aos generais do governo são indícios do desprezo desse núcleo pelo apego da instituição militar à rotinização dos afazeres e à previsibilidade das condutas, esses dois atributos da burocracia provocam urticárias em qualquer “movimentista”.
Diante do material humano e intelectual da facção, deve-se reconhecer que existe a opção de ela achar que o golpe militar manteria Bolsonaro na presidência, contudo, parece, eles não querem o poder de Estado para governar, no sentido de administrar a coisa pública para consecução de algum fim, ainda que sejam fins egoístas; eles querem o poder público para alimentar a luta contra inimigos que podem ser criados e recriados indefinidamente, o que seria obstaculizado pela tutela militar: o “gabinete do ódio” funcionaria como? E o cercadinho do Palácio do Planalto para insuflar as “massas”?
Quem quiser ponderar que tais reflexões são enganadoras por causa do nível intelectual dos bolsonaristas, ou seja, que eles não passam de incompetentes destrambelhados e nada mais, deveria não se esquecer de que foi a escória intelectual e moral que elevou o fascismo na Europa. Hannah Arendt pode servir como mestra nesse assunto.
As instituições democráticas brasileiras reagirão como diante dos ataques abertos e declarados à luz do dia? Nas crises anteriores (Collor, mensalão, Dilma) não nos confrontamos com agentes que estavam dispostos ao “tudo ou nada”, ou, pelo menos, eles eram minimamente realistas para saber que não dispunham de recursos de poder para partir para o “tudo ou nada”. (Um parênteses talvez animador: Umberto Eco certa vez disse que os protofascistas tendem a ser sempre derrotados porque, como eles menosprezam a realidade, eles sempre subestimam as forças do inimigo). O cenário agora é tomado por um tipo de agente que apresenta o caráter descrito acima. A dúvida não é de que eles devam ser detidos; a dúvida é sobre o comportamento da instituição política que têm em suas mãos o fuzil. A decantada profissionalização das Forças Armadas brasileiras talvez seja mais suposta do que real, pode-se duvidar de que esse processo de profissionalização, que de fato existe, tenha se completado, todavia este artigo não é o lugar para tratar desse assunto.
*Cientista político e professor da UFBa