Qualquer insurgência contra o STF é afronta à ordem e à paz social, prenuncia autoritarismo
Os momentos que estamos a viver cá no Brasil, a Terra da Santa Cruz, levam-me a breve reflexão em torno do tema da separação entre Legislativo, Executivo e Judiciário. Separação resultante de tripartição de um todo. Todo que, no entanto, não pode ser despedaçado, pois o Estado é um só, a chamada separação dos Poderes prestando-se unicamente a permitir que atue em plena coerência com os princípios e regras da democracia.
A pequena frase de Charles de Gaulle tudo diz: a autoridade do Estado é indivisível! Antes dele, Hegel, ao afirmar que o Estado distribui sua atividade entre vários Poderes, porém de modo que cada um deles seja, em si mesmo, uma porção da totalidade, de um todo único. O Estado é uma totalidade. Quando se fala da diversidade de eficácia dos Poderes, de sua ação e sua eficiência – diz ele –, é necessário não incorrermos no erro de considerar as coisas como se cada Poder estivesse lá abstratamente, por si próprio. Os três são momentos do conceito de Estado. É primorosa a lição de Carlos Maximiliano ao afirmar que – como no corpo do homem – no Estado não há isolamento de órgãos, mas especialização de funções.
Permito-me ir além, recorrendo ao que Kelsen ensina: o que se refere sob o nome de “poder estatal” é a validez de uma ordem jurídica. Daí que a ideia de uma partição dessa validez é absurda, a suposição do funcionamento isolado de três Poderes sendo insustentável. Não é possível supormos que essa trindade – Legislativo, Executivo e Judiciário – não constitua uma unidade.
A organização estatal em funções torna viável, aprimorando-o, seu funcionamento. O Legislativo produz as leis, o Executivo as aplica e o Judiciário decide. Todos como que vestem um manto de autoridade não porque detenham poderes. Autoridade é o saber o que se deve fazer, serenamente. Os romanos chamavam-na de auctoritas. Por isso todos nós a eles devemos respeito e acatamento. Uma das tarefas primordiais do Estado moderno é a produção de uma ordem jurídica que garanta certeza e segurança jurídicas. Sem elas não haverá como vivermos em liberdade.
Ontem interrompi o que até este ponto vinha escrevendo e agora, 24 de maio, leio no Estadão das minhas manhãs a primeira das Notas & Informações, O Estado paralelo de Bolsonaro. Lá estão afirmados pontos que tenho como extremamente relevantes, incluído o de que, em reunião no mês de abril, ministros defenderam a prisão de magistrados que, em obediência à Constituição, tomaram decisões contra o governo. Mais, investiram contra atos de prefeitos e governadores que, seguindo recomendações de autoridades de saúde, impuseram quarentena contra a pandemia de covid-19. Delinquentes seriam os que respeitam a lei e o bom senso, o que resulta da concepção de que este ou aquele dos três Poderes não seria de todo conformado pela Constituição. Um deles, o Executivo – pasmem! – estaria acima de tudo e de todos! O que, na ponta de tudo, conduz à criação de um Estado paralelo ao Brasil que cá está onde estamos. Estado paralelo que investe contra isso e aquilo, até mesmo contra governadores que impõem quarentena em defesa da vida e ministros do Supremo Tribunal Federal.
Ainda que tudo o que desejava afirmar em defesa do Estado Democrático de Direito lá esteja, na primeira das Notas & Informações da edição de 24 de maio do Estadão, enquanto e como membro aposentado do Poder Judiciário insisto em que, se pretendermos viver honestamente, contribuindo para o bem de todos, será indispensável acatarmos, com dignidade, suas decisões. Não porque elas façam justiça. Pois é certo que, como dizia Kelsen e tenho reiteradamente repetido, a justiça absoluta só pode emanar de uma autoridade transcendente, só pode emanar de Deus. Temos de nos contentar, na Terra, com alguma justiça simplesmente relativa, que deve ser vislumbrada em cada ordem jurídica positiva e na situação de paz e segurança por esta mais ou menos assegurada. Os juízes são servos da Constituição e das leis, servos de um sistema de normas jurídicas que se presta a assegurar um mínimo de calculabilidade e previsibilidade na prática das relações sociais.
Qualquer insurgência contra essa face do Estado que o Supremo Tribunal Federal é afronta a ordem e a paz social, prenuncia vocação de autoritarismo, questiona a democracia, desmente-a, pretende golpeá-la. Por isso é necessário afirmarmos, em alto e bom som, o quanto de respeito e acatamento devemos ao Poder Judiciário e em especial, hoje e sempre, ao Supremo Tribunal Federal. Sobretudo porque – repito – ele não surpreende por sua independência. O Estado é indivisível.
A soberania popular, força que o constitui, permite apenas que ele distribua dentro de si as suas funções. Por conta disso quaisquer ações deste ou daquele dos três Poderes, avançando sobre outro, afronta não apenas sua tripartição, mas a democracia. Ao fim de tudo, se chegarem aonde pretendem, seremos vistos como pobres, tristes, coitados habitantes da Terra da Cruz!
*Advogado, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP, foi ministro do Supremo Tribunal Federal