A história republicana brasileira, e já se vão 130 anos da Proclamação da República, não foi propriamente um céu de brigadeiro ou um mar de almirante em termos de estabilidade política e institucional. Assemelha-se mais a uma montanha russa.
Já no nascedouro a República foi marcada por uma confusa ruptura com a monarquia, a partir da ação das Forças Armadas. Em 1930, tivemos outra quebra da ordem constitucional, após a dissolução do pacto de governabilidade da República Velha e do seu pilar, a famosa política do café com leite. Getúlio Vargas, liderando uma aliança com Minas Gerais e o Nordeste brasileiro, instalou a República Nova e o Governo Provisório. Pressionado pela Revolução Constitucionalista de 1932, capitaneada por São Paulo, foi obrigado a convocar uma Assembleia Constituinte que gerou a Constituição de 1934, de curta vida. Em 1937, aproveitando a instabilidade provocada pelas movimentações integralistas e pela Intentona Comunista de 1935, tendo como biombo o fantasioso Plano Cohen, Getúlio dá um golpe institucional, fecha o Congresso e outorga a quarta Constituição do Brasil, a terceira da República, conhecida como a Polaca, em 10 de novembro de 1937. Mais uma vez, as Forças Armadas tiveram papel preponderante. Contemporâneos a esses acontecimentos avaliam que o golpe viria com ou sem Getúlio. A nova ordem do Estado Novo era baseada em forte centralização do poder na União, nacionalismo, intervencionismo estatal e anticomunismo. Durou até 1945, quando a vitória dos aliados na Segunda Grande Guerra impôs a volta à democracia.
De 1946 em diante, tivemos também grande instabilidade política com o suicídio de Vargas em 1954, as conspirações contra JK, a renúncia de Jânio Quadros em 1961, a frustrada experiência parlamentarista de 1962, a radicalização extrema no governo João Goulart e como consequência o golpe militar de 1964, os Atos Institucionais e a nova Constituição de janeiro de 1967, interrompendo a experiência democrática anterior e que persistiria até 1985.
A luta democrática dos anos de 1970 desencadeou as históricas campanhas pela Anistia e das Diretas-Já que pavimentaram o caminho para a vitória de Tancredo Neves contra Paulo Maluf no Colégio Eleitoral em 1985 e a fundação da Nova República com a sua Constituição de 1988. Mesmo este ciclo político foi marcado por momentos tensos como os dois processos de impedimento dos Presidentes eleitos Fernando Collor (1992) e Dilma Rousseff (2016). A eleição disruptiva de 2018 representou o fim do ciclo da Nova República e cristalizou o desgaste extremo de todas as forças políticas tradicionais.
O novo governo liderado pelo Presidente Jair Bolsonaro abriu mão do chamado “presidencialismo de coalizão” e de construir maioria parlamentar estável. Na sociedade e no novo palco de disputa política, as redes sociais, nunca houve, desde 1985, um ambiente tão polarizado e radicalizado.
Este longo, mas superficial, mergulho na história política brasileira é somente para jogar luzes na preocupação de que como diria Otávio Mangabeira “A democracia é uma planta tenra, a gente tem que cuidar todo dia”. A liberdade é talvez o maior sonho do ser humano e a democracia, o melhor caminho para definirmos os destinos do país e do mundo.
Neste sentido, precisamos interromper rapidamente a atual “marcha da insensatez”. O governo e sua base de apoio político e social promovem uma polarização intensa e radical contra o Congresso Nacional e o STF. O STF, apoiado pelo Ministério Público Federal e a Polícia Federal, empreende uma série de ações e inquéritos, cumprindo suas funções institucionais, que afetam importantes atores políticos da República. A imprensa, cumprindo seu papel social, em uníssono defende diariamente a democracia e aponta os riscos envolvidos. O Congresso Nacional, surpreendentemente, por ser uma casa mais quente e fragmentada, tem desempenhado o papel de mediador de conflitos e poder moderador, mas abriga a natural polarização política, já que é a caixa de ressonância da sociedade. As Forças Armadas reiteram seu compromisso com a Constituição, mas algumas lideranças delas egressas jogam lenha na fogueira da crise. Onde vamos parar? Haverá luz no final do túnel?
O desenrolar dos fatos aponta para um inevitável impasse. Seria lamentável que isso ocorresse. Enfrentamos uma brutal e surpreendente crise sanitária com a pandemia do coronavírus e seus efeitos colaterais agressivos no desempenho da economia. Imaginem um impasse político de difícil solução com pessoas morrendo nos hospitais, desemprego chegando a 20 milhões de brasileiros, queda substantiva de renda daqueles que vivem à margem do mercado formal de trabalho, quebra de milhares de empresas e crise fiscal do setor público nos três níveis agravada pela pandemia? Caminharemos para uma encruzilhada onde apenas quatro cenários possíveis e dramáticos se colocam: o golpe institucional a partir do Palácio do Planalto, rompendo com a Constituição e a democracia, o impeachment pelo Congresso, o afastamento do Presidente pela via judicial ou a alternativa de empurrar com a barriga por dois anos e meio até 2022, com crises diárias e interrupção do processo de reformas estruturais e de ajuste fiscal e da retomada do crescimento econômico?
Não, este não é o caminho! Apostar no impasse é uma irresponsabilidade com o país e com a democracia brasileira. Podemos viver uma crise de hegemonia de repercussões imprevisíveis com instituições e sociedade divididas, sem um rumo claro para a superação do impasse político e institucional.
Em boa hora, aconteceram o importante discurso do Presidente da Câmara, Rodrigo Maia, onde conclamou pela união de esforços e pediu serenidade e diálogo a todas as lideranças das instituições republicanas, e a iniciativa do Presidente do Senado Federal, Davi Alcolumbre, de procurar o Presidente da República, Jair Bolsonaro, na última quinta-feira, para pedir cautela. O Congresso Nacional, muitas vezes tão injustiçado nas redes sociais e na opinião pública, está tendo um comportamento exemplar na difícil quadra histórica em que mergulhamos.
No longo prazo, sem interferir nos direitos políticos adquiridos de curto prazo, de forma institucional, impessoal e suprapartidário, temos que dialogar sobre o parlamentarismo. No meu ponto de vista, o presidencialismo brasileiro se esgotou. Claro que a alternativa parlamentarista teria que ter adesão da sociedade, uma prévia reforma política e o fortalecimento do funcionamento da burocracia de Estado, no sentido weberiano, assegurando estabilidade permanente e profissionalizada às políticas públicas.
No presidencialismo americano o debate e os impasses envolvem apenas dois partidos, republicanos e democratas, garantindo a funcionalidade do sistema e as condições mínimas de governalibidade. Aqui temos hoje vinte e quatro partidos presentes no Congresso Nacional e na atual configuração os termos maioria e minoria perderam o sentido. Não há estabilidade política possível e nem responsabilização inequívoca de papéis para permitir o avanço de qualquer agenda governamental.
O parlamentarismo é muito mais ágil e flexível para administrar suas crises. Nele, há clara formação de maioria e minoria, com responsabilidades e papéis muito bem definidos. Aqui, somos escravos da rigidez dos mandatos e diante de impasses caminhamos logo para a traumática via do impeachment.
Na Itália, a desestabilização do gabinete introduzida por ousada e atrapalhada ação da extrema-direita de Matteo Salvini e sua Liga do Norte, foi respondida pela improvável aliança do Movimento 5 Estrelas com o Partido Democrático. Na falta de maioria parlamentar em Portugal, foi configurada a chamada Geringonça Portuguesa, alinhando o Partido Socialista, o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista, que se saiu muito bem no governo.
Na Espanha, depois de várias eleições, a solução para a governabilidade teve o Partido Socialista Operário Espanhol como pêndulo entre Ciudadanos e Podemos, formando, ao final, maioria para governar em torno de Pedro Sánchez. Na Alemanha, Angela Merkel, com sua experiência e autoridade política, governa com maioria no Bundestag, embora as próximas eleições reservem perspectivas nebulosas, se Merkel realmente sair de cena. Na França, Emmanuel Macron formou ampla maioria no parlamento francês nas últimas eleições. Lá também as próximas eleições reservam emoções fortes. Mas o parlamentarismo é muito mais eficiente para resolver os impasses de hegemonia e governabilidade.
Enfim, no Brasil, temos que evitar o impasse político de curto prazo em situação de aguda crise sanitária e econômica, e cuidar de nossa tenra planta, a democracia brasileira. E no momento próprio, instalar um amplo debate no Congresso e na sociedade, em torno da alternativa parlamentarista.
Fora isto, teremos uma perspectiva caótica, sombria e perigosa.