Países terão déficit público recorde. Essa conta terá de ser paga
Governos por todo o mundo estão fazendo esforços hercúleos para conter a devastação causada pela epidemia de covid-19 na economia e na saúde. Nunca se gastou tanto em tempos de paz. Passado o pior dessa crise, a ressaca fiscal deverá resultar igualmente desafiadora.
Será difícil escapar de uma onda de aumento de impostos para reajustar as contas públicas. Haverá muita movimentação nesse sentido nos próximos meses. E esse processo de alta da carga fiscal, se não bem conduzido, pode gerar tensão social, política e mais dano econômico.
Neste momento de guerra ao coronavírus, os governos estão aumentando incrivelmente os seus gastos, de um modo que é até difícil de controlar, para financiar o setor de saúde e para ajudar empresas e pessoas que perderam faturamento e renda.
Os governos estão sofrendo ainda com uma queda sem precedentes da receita. A atividade econômica desabou, e a arrecadação de impostos caiu junto. Além disso, os programas de socorro incluem medidas de alívio fiscal. Muitos países adiaram o recolhimento de impostos ou reduziram seu valor. Possivelmente, parte desses impostos nunca serão pagos.
Assim, a pressão imediata por mais gastos combinada com a queda na receita está gerando uma situação fiscal explosiva, que é generalizada. A maioria dos países deve ter déficit público recorde neste ano. A África do Sul já prevê déficit acima de 10% do PIB. Cingapura prevê mais de 15%, projeção que também já se vê no Brasil. Nos EUA, o Escritório de Orçamento do Congresso prevê déficit neste ano de US$ 3,8 trilhões, quase quatro vezes os US$ 984 bilhões do ano passado, atingindo cerca de 18% do PIB.
Há muita dúvida quanto à duração da epidemia e o dano adicional que ela ainda pode causar, o que dificulta antecipar quanto os governos ainda terão de gastar. Também há dúvidas sobre a intensidade da recuperação pós-epidemia. Quanto mais rápida e forte ela for, mais receita fiscal vai gerar, ajudando assim no ajuste das contas públicas. Mas se essa retomada for lenta, o ajuste fiscal será mais demorado. O Reino Unido, por exemplo, prevê que o déficit fiscal do país só cairá abaixo de 5% do PIB após 2024.
Não sabemos direito também como será a demanda social no pós-epidemia. Certamente haverá pressão para fortalecer os sistemas de saúde, especialmente a preparação para epidemias. Além disso, muitos países estão adotando temporariamente programas de distribuição de renda. Pode ser difícil retirá-los subitamente. A Espanha, por exemplo, anunciou que quer criar um programa permanente de renda mínima. Outros países estão avaliando isso. Ou seja, os gastos públicos explodiram, a receita caiu e é incerto que essa dinâmica possa ser corrigida rapidamente.
Parte dessa conta que se avoluma está sendo paga com impressão monetária, direta ou indiretamente, como por meio de programas de flexibilização quantitativa. Nesse caso, os BCs financiam os governos por meio da compra indireta de títulos públicos, no mercado secundário, como faz o Banco Central Europeu. Boa parte da conta, porém, vai virar dívida.
Países com mais solidez econômica e financeira têm maior credibilidade e podem lidar melhor com um aumento expressivo da dívida pública. Mas a maioria, não. Isso implica o risco grande de uma crise da dívida, principalmente nos países emergentes. Estes, para financiar suas dívidas, se verão compelidos pelos mercados a ao menos indicar um caminho de ajuste nas suas contas públicas
Mas todos terão de lidar com essa dívida, cedo ou tarde. E a dinâmica das contas sugere que será difícil evitar um aumento de impostos. Muitos países já estão discutindo isso. A Comissão Europeia também deixou claro que buscará mais impostos – inclusive inéditos impostos europeus – para financiar o seu plano de recuperação da União Europeia, de € 750 bilhões.
“A dívida pública vai crescer. Essa dívida uma hora terá de ser paga. E como é que se paga? Com impostos, não há outro modo”, disse ontem o ex-presidente da Comissão Europeia José Manuel Durão Barroso, em webinar promovido pelo Fundação Fernando Henrique Cardoso. “Vai ter a dívida pública a pagar, o que exige maior taxação”, completou, a respeito a aumento do papel do Estado decorrente da epidemia.
“Vamos sair [dessa crise] muito endivididos”, disse Fernando Henrique Cardoso no webinar. Ele acha que os governos estão corretos em “jogar dinheiro” neste momento, mas “a dívida vai aumentar” e “o custo disso será pago nos próximos anos”, afirmou. “Precisaremos de mais taxação para redução da dívida.”
Mas quais impostos elevar? Aumentar quanto? Por quanto tempo? Essa discussão complexa deverá crescer à medida que os países forem saindo da situação de emergência da pandemia. Se não for encaminhada com habilidade, pode gerar um corrosivo conflito distributivo, sobre como dividir a conta.
As maiores fontes de arrecadação dos governos são os impostos sobre a renda e sobre o consumo. Mas subir muito o imposto de renda das empresas, num momento em que muitas delas estarão tentando sair do coma induzido pela crise, pode ser contraproducente. Taxar muito mais o consumo também é arriscado, pois as economias já estão com a demanda deprimida. Elevar o imposto de renda da pessoa física, possivelmente dos mais ricos, deverá ser uma opção.
Essa pressão de maior taxação dos mais ricos deve crescer, já que a crise tende a aumentar ainda mais a desigualdade, que já vinha em alta nas últimas décadas.
Há outras ideias sendo discutidas, como o imposto sobre fortunas, a taxação das gigantes digitais (que pagam menos impostos que as demais empresas), ampliar a taxação sobre ganhos financeiros ou até o imposto sobre transações financeiras. No Brasil, o governo já ventila ressuscitar a CPMF.
A Comissão Europeia propôs ainda uma taxa sobre o plástico (que incentivaria a redução do consumo), ampliar a taxação de emissões de carbono e um controverso imposto de importação que seria cobrado de produtos vindos de países que não cumprem metas de reduzir as suas emissões. Isso pode gerar uma nova onda protecionista.
FHC alertou que “as pessoas precisam acreditar que o dinheiro [dos impostos] não é para aumentar o tamanho do Estado, mas para reduzir a dívida pública”. E Durão Barroso alertou que é importante “que o Estado não atinja um peso que possa prejudicar a inciativa privada” Não é um processo fácil de tocar.