Em tempos de crise, até mesmo inimigos podem ajudar-se uns aos outros para superar os desafios impostos pela pandemia do novo coronavírus Covid-19 em todo o mundo. Papéis da Ciência, da mídia e da administração pública passam por reavaliação, avalia Pedro Scuro Neto
Que maravilha!
Quantas boas criaturas temos aqui!
Como a humanidade é bela!
Oh admirável mundo novo
Que tem gente assim.
William Shakespeare, A Tempestade.
A sociedade trata os intelectuais com desconfiança, mas, em tempos de crise, fecha os olhos e daqueles menos escrupulosos encomenda profecias. Narrativas que a grande imprensa, na função de sentinela do sistema, agenda para fazer a opinião pública confiar que “quando tudo isto tiver passado, o mundo não será mais o mesmo”. [1] E o que esse mundo será, um dos literatos, dentre os profetas o favorito, se encarrega de dizer. Um mundo diferente, em que aprenderemos a lidar com “políticos irresponsáveis”, os mesmos que nos fizeram perder a confiança na ciência, nas autoridades e na mídia, que doravante serão os grandes mediadores das mudanças. Para fazer a diferença a palavra-chave será “solidariedade”, pois se “escolhermos desunião apenas prolongaremos a crise, trazendo catástrofes ainda piores”. Mas, se, ao contrário, “optarmos pela solidariedade global, venceremos não somente o coronavírus, mas toda e qualquer epidemia ou crise que sobrevier neste século”. [2] E como fazer isso? Em tempos normais, não se pode resgatar a confiança perdida, mas, como estes são “tempos de crise”, os espíritos podem mudar e até mesmo inimigos encontrarão “reservas secretas de confiança e amizade, dispondo-se a ajudar um ao outro”.
Na base de soluções proféticas estão sempre estratagemas. Neste caso, o truque é “naturalizar” o surto como se fosse algo íntimo, uma crise pessoal, que pede mudança de lentes para se enxergar melhor. Exige, sobretudo, confiar em intermediários, a mídia, a ciência e as autoridades, que, sob a influência da “maior crise da nossa geração”, vão ficar mais sintonizadas e sensíveis aos dramas de cada um. Em vez de monitorar, como sempre fizeram, vão propiciar “escolhas pessoais mais informadas”. A decisão final, porém, seguirá sendo dos indivíduos. Razão pela qual “a crise do coronavírus pode ser a batalha decisiva, pois entre privacidade e saúde as pessoas escolherão a segunda”. Mas, o que fazer com os incorrigíveis “egomaníacos”, os políticos, os “irresponsáveis” a quem deve ser imputada toda a culpa da crise de confiança nos “mediadores”? Neste preciso momento, desmorona toda a argumentação do profeta favorito, que desconhece os fatos e os atores.
Para começar, a ciência, o “mediador” mais neutro, fonte de probidade e veracidade, porém há décadas imerso em uma crise que nada tem a ver com políticos, mas com práticas ruins. A saber, em primeiro lugar, reprodutibilidade insatisfatória – recentemente, um projeto replicou 100 experimentos descritos em revistas indexadas de uma determinada ciência, cujos “efeitos alcançaram apenas a metade da magnitude original”.[3] Em segundo lugar, abusiva dependência de métricas, metas e indicadores, que, em lugar de sustentar avaliação qualificada, oprimem consciências, distorcem comportamentos e corrompem carreiras. Por último, problemas de revisão por pares, a menos ruim de todas as formas de governança acadêmica, mas assim mesmo assombrada por escândalos e denúncias. Tudo isso foi tema do livro de um sociólogo norte-americano, o primeiro a entender que os problemas da ciência não estão em seus fundamentos epistemológicos, mas nas imperfeições de suas práticas. Meio século depois, ele ainda denuncia as “pressões corruptoras” de uma “ciência industrializada”, cujos “incentivos perversos” obrigam os cientistas a se submeter a uma gig economy de contratos de curto prazo, sem direitos, sob o domínio de supervisores caprichosos.[4]
Por conta disso, a qualidade tornou-se instrumentalizada e a excelência perdeu espaço para o “impacto”, a nova regra do jogo. Situação agravada por tecnologias de guerra cientificamente informadas, pela manipulação financeira e pela predação ambiental, que, mesmo “aumentando as possibilidades de uma catástrofe civilizacional”, mostram que “o rei está nu”. Não se depender de literatos agenciados pela mídia para desviar nossa atenção de práticas ruins e de seus verdadeiros agentes.
Na administração, o segundo “mediador”, a prática mais nociva é a corrupção, “inerente às indústrias de mineração, petróleo e gás, construção e engenharia, todas de alto risco e objeto de investigação no mundo inteiro”.[5] A questão não é tanto o governo ou os políticos, mas o setor, num contexto em que a influência de organizações multilaterais se tornou preponderante. Caso do Banco Mundial, que, em 2011, orgulhosamente anunciou que seu braço no setor privado, a International Finance Corporation, tinha aberto linha de crédito de 50 milhões de dólares para a construtora Norberto Odebrecht. Fundos imediatamente transformados em ações de 250 milhões, como garantia de contratos de projetos de obras públicas.
Tudo documentado, mas, quando sobrevieram os escândalos, rapidamente deletado da base de dados do banco: “parcerias público-privadas” de 30 bilhões de dólares que a Odebrecht e outras quatro empreiteiras receberam de um banco estatal de desenvolvimento para operações na África e América Latina. Parcerias e suas indefectíveis “renegociações contratuais”, “terreno fértil para corrupção” – segundo Christopher Sabatini, professor da Universidade de Columbia, para quem “todo mundo sabia”, ou seja, que “a Odebrecht agenciava corrupção” com a chancela do Banco Mundial. Uma “tramoia evidente desde o começo”, na qual a IFC e o banco não corriam nenhum risco – “investigações de corrupção não chegam a outros países implicados e, nos países-clientes, os representantes do banco estão blindados contra processos judiciais”.[6]
O último ‘mediador’ do admirável mundo novo anunciado pelo profeta é a mídia, cujo “papel satânico” (Bauman) é “revolucionar os mecanismos de percepção do mundo” e instrumentalizá-los. Indústria conformadora de consciências que permeia todos os setores da sociedade, assumindo funções de controle e orientação. Não devido à informação que transmite, mas ao “conteúdo” – o que Marshall McLuhan chamava de “pedaço de carne”, que o ladrão traz para distrair o cachorro enquanto saqueia a casa. Indústria em crise, não por conta de políticos, mas de fatores estruturais relacionados com uma drástica queda na venda de mídia impressa e na saturação do mercado que obriga à competição com modalidades de mídia menos formais e profissionais. O que obriga a mover céus e terras para manter a clientela e fatias de mercado através da exploração do sensacionalismo, de uma incessante produção de notícias e de uma frenética busca por “inimigos”, para os quais se antecipa punição.
Crise não de agora, mas desde quando o primeiro grande centro produtor e difusor de notícias, a Igreja Católica, começou a perder o monopólio dos púlpitos e o status de “fonte” suprema, à qual todos, do mais rico e poderoso ao mais miserável, davam ouvidos com reverência.
Na antiguidade, os futurólogos eram “profetas da desgraça” que anunciavam cruéis castigos de Jeová para o povo – principalmente para dirigentes indignos (“os políticos”). Os atuais parecem mais atraídos por “renunciantes” budistas portadores de notícias acerca da “vida boa”. Laicizadas, mas sempre avessas à linguagem da democracia, suas derrapadas metafísicas desbordam o contexto estritamente religioso e invadem o âmbito da intimidade pessoal – cujas sutilezas só podem ser entendidas através dos inesgotáveis recursos da literatura. O que fez Aldous Huxley (Admirável Mundo Novo) há noventa anos, imerso na tempestade perfeita desencadeada depois da Primeira Guerra. Identificou estabilidade como a “necessidade original e derradeira” da civilização que luta para sobreviver a crises múltiplas. Como as de hoje, causadas por um modelo social, econômico e político falido, miseravelmente pego de surpresa por um minúsculo agente infeccioso. Crises agravadas por superpopulação e pelos meios de controle usados para submetê-la – dentre os quais Huxley destacaria as drogas e a sugestão subliminar, pedindo resistência para defender a democracia contra o autoritarismo, mais uma vez aos nossos portões.
No mundo real, enquanto os países se mobilizam para conter o coronavírus e suas nefastas consequências – a pior das quais é o colapso dos sistemas de saúde – não se pode perder de vista quadro bem mais assustador: uma nova pandemia é só uma questão de tempo. O surto global de Covid-19 não foi uma anomalia; doenças infecciosas emergem e reemergem em velocidade nunca vista ao longo da história. De 1980 a 2013, o número de epidemias anuais oscilou de 1.000 a mais de 3.000. Doenças infeciosas como Zika, MERS-CoV, SARS, cólera, tuberculose, HIV, influenza e ebola matam milhões todos os anos e, no seu rastro, destroem economias, causam pânico e, como no Brasil, crises institucionais. Situação que expõe a fragilidade das economias, a insuficiência das redes de segurança social e permanente subinvestimento em sistemas de saúde pública.
É preciso, primeiro – e antes de qualquer coisa – reforçar a capacidade do sistema de saúde na detecção e contenção de doenças com organismos centralizados de vigilância de dados que articulem informações de laboratório com dados populacionais e medidas clínicas. Em segundo lugar, desenvolver comunicação e coordenação, articulando centros de controle e prevenção com organismos da sociedade civil capazes de guiar respostas durante as crises e preparar protocolos baseados em evidências e boas práticas de saúde mesmo em tempos em paz. Finalmente, focar nas desigualdades que fazem as crises tão devastadoras, atentando para pequenas empresas, trabalhadores e pessoas mais vulneráveis.[7]
* Pedro Scuro Neto é sociólogo, diretor da Sociedade Internacional de Criminologia (Paris), autor de Sociologia Geral e Jurídica, cuja 8ª edição (A Era do Direito Cativo) é publicada pela Saraiva: S. Paulo.
Mais informações:
[1] Francesca Melandri (2020). https://www.theguardian.com/world/2020/mar/27/a-letter-to-the-uk-from-italy-this-is-what-we-know-about-your-future
[2] Yuval Harari (2020). https://www.ft.com/content/19d90308-6858-11ea-a3c9-1fe6fedcca75
[3] https://osf.io/ezcuj/wiki/home
[4] Jerome Ravetz (2016). https://www.theguardian.com/science/political-science/2016/jun/08/how-should-we-treat-sciences-growing-pains
[5] Andreas Pohlmann, Folha de S. Paulo, 22/9/2015.
[6] Roberto Bissio (2017). Leveraging corruption – How World Bank funds ended up destabilizing young democracies in Latin America, http://www.socialwatch.org.
[7] Jane J. Kim e Michelle A. Williams (2020), https://fortune.com/2020/03/29/coronavirus-pandemic-public-health-preparedness.