Vera Magalhães: O Inferno de Dante

Reunião ministerial é a representação da obra do poeta nos tempos de pós-verdade.
Foto: GDA VIA ZUMA WIRE/DPA / EUROPA PRESS
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Reunião ministerial é a representação da obra do poeta nos tempos de pós-verdade

“Deixai toda a esperança, vós que entrais!” A inscrição aparece quando o poeta italiano Dante Alighieri cruza o Portal do Inferno em sua epopeia A Divina Comédia. Vale para quem se arrisca a assistir à representação da obra nos tempos de pandemia e pós-verdade. Sim, estou falando da reunião ministerial do governo Jair Bolsonaro de 22 de abril, para a qual o único adjetivo possível é dantesca.

O fato de que alguns críticos anestesiados por tanto horror produzido por este governo tenham conseguido minimizar o que se passou ali nos leva de novo à obra do poeta italiano: são pessoas que estão ali no Vestíbulo, pouco antes do Primeiro Círculo do Inferno.

É o lugar dos covardes, fracos e indecisos, no qual se encontram hoje um bom número de homens públicos, alguns pretensos formadores de opinião e uma parcela letárgica da sociedade.

Mas há os que já desceram a alguns dos Nove Círculos do Inferno percorridos por Dante em sua viagem. Nos seis primeiros estão os que cometem pecados involuntários, nos quais há culpa, mas não dolo.

A coisa começa a ficar mais grave quando se passa aos três últimos círculos, com seus vales, fossas e esferas. É nesses lugares sombrios que estão os participantes da reunião macabra capitaneada por Bolsonaro, o capitão da versão pandêmica do inferno dantesco.

O Sétimo Círculo é o lugar dos violentos. Bolsonaro prega abertamente a criação de uma milícia paramilitar armada até os dentes para resistir a governadores, prefeitos e ordens judiciais. É a defesa da criação de um Estado paralelo, diante de ministros absolutamente silentes.

Os dez fossos do penúltimo círculo do inferno são a morada dos sedutores, aduladores, simoníacos (traficantes de coisas divinas), adivinhos, corruptos, hipócritas, ladrões, maus conselheiros, semeadores de discórdia e falsificadores.

Todas essas figuras aparecem na reunião, sem filtro. Ricardo Salles fala em aproveitar a “tranquilidade” da pandemia para barbarizar na desregulamentação de áreas como meio ambiente e agricultura. Chega a quase salivar de excitação, aos olhos de um incrédulo e novato Nelson Teich, que conseguiu ficar no vestíbulo do inferno bolsonariano, antes de se afogar em seus rios de cloroquina.

Damares Alves está lá, nos fossos do Oitavo Círculo, se esmerando para mostrar serviço ao chefe e falando em usar sua pasta para prender (!) prefeitos e governadores. É estarrecedora a distorção de realidade que ela demonstra, num semitranse, ao elencar notícias falsas para justificar que iria “pegar pesado” dali por diante. Bolsonaro adorou.

Abraham Weintraub, então, pode fazer um rodízio entre os fossos, pois preenche todos os requisitos para chafurdar naquele inferno pelo resto dos seus dias. Para júbilo de um Bolsonaro que exige de seus ministros a capitulação absoluta aos pecados logo na abertura da comédia dantesca, fala em prender “vagabundos”, entre os quais os ministros do STF.

O Nono Círculo do Inferno é o dos traidores. É o lugar de Bolsonaro, e será também o dos que insistirem em seguir com ele diante da evidência de crimes (interferir na Polícia Federal para proteger familiares de investigações, como fica comprovado pelo vídeo e pelas declarações e ações posteriores do presidente), autoritarismo e absoluta falta de humanidade, empatia e preocupação com uma pandemia que ceifa vidas de brasileiros aos milhares enquanto o presidente da República e seus asseclas atentam contra o bom senso, a saúde pública, a ética e a Constituição à luz do dia e em horário de expediente. O Inferno descrito por Dante talvez não contenha círculos suficientes para descrever o que se passou em Brasília em 22 de abril.

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