Auxílio emergencial intimida parlamentares e contém adesão ao impeachment no Congresso
O futuro do governo Jair Bolsonaro hoje parece passar mais pelo auxílio emergencial do que pelo procurador-geral da República. Por mais que os inquéritos no Supremo Tribunal Federal avancem, nenhum processo contra o presidente poderá ser aberto sem a anuência da Câmara dos Deputados. E lá dificilmente se formará maioria contra Bolsonaro enquanto o governo fizer chegar ao bolso dos mais pobres um dinheiro nunca dantes visto para muitos.
O calendário eleitoral é favorável ao presidente. Parlamentares dispostos a se engajar pelo impeachment ficam acuados frente ao número de beneficiários do auxílio emergencial entre eleitores de vereadores e prefeitos que formam a base para sua recondução em 2022. A qualquer movimento desses parlamentares, os eleitores são bombardeados pelas redes sociais bolsonaristas com a exposição de uma conduta que, ao mirar contra o mandato do presidente, se coloca também como adversária do auxílio emergencial. Como a pandemia deve fazer com que esta campanha eleitoral seja ainda mais digital que as anteriores, a armadilha está posta.
Tome-se, por exemplo, o exemplo de Alagoas, Estado de segundo pior IDH do país. Na convalescença da covid-19, o secretário da Fazenda, George Santoro, se deparou com um impacto do auxílio emergencial sobre a renda das pessoas que nunca havia visto antes. O dinheiro que chega hoje mensalmente ao Estado para o auxílio emergencial equivale a cinco vezes o valor destinado ao Bolsa Família.
Famílias que recebiam o benefício médio de R$ 186 passaram a fazer jus a outro, de R$ 1,1 mil, por estarem cadastradas em nome de mães solteiras, com direito ao dobro do valor, descontado o Bolsa Família. Num Estado em que até a agricultura parou, pela entressafra da cana, o auxílio emergencial se transformou num inacreditável Xangrilá. A pandemia ruma para fechar a semana com duas dezenas de milhares de mortos que, cada vez mais, vão avançar para a classe social dos beneficiários, transformando o auxílio emergencial numa pensão-covid.
Nenhum parlamentar captou melhor o potencial do auxílio emergencial do que André Janones (Avante-MG). Advogado eleito em 2018 como uma das lideranças da greve dos caminhoneiros numa campanha majoritariamente digital, Janones usa a rede para explicar a seus eleitores como baixar o aplicativo e fazer o cadastro do auxílio emergencial. E ainda se oferece para ser o despachante das dúvidas e dificuldades enfrentadas pelos eleitores que tentam obtê-lo.
Sua posição é resumida num post de 30 de abril: “Os políticos de esquerda estão muito ocupados falando mal do presidente e os da direita defendendo ele. Entendeu porque ninguém tem tempo de correr atrás pra você receber seu auxílio emergencial?”. Levantamento de Manoel Fernandes (Bites) mostrou que a estratégia levou o deputado mineiro a mais do que dobrar sua base digital em 60 dias. Ele era o 15º parlamentar em seguidores nas redes. Hoje é o sétimo.
Janones ainda tem uma rede menor que a dos deputados Eduardo Bolsonaro (sem partido-SP) ou Joice Hasselman (PSL-SP), mas a quantidade de interações (reações dos usuários das redes sociais), obtidas a partir de suas postagens sobre o auxílio emergencial, supera a de qualquer um dos 513 parlamentares. Em 60 dias, suas postagens alcançaram 12,8 milhões de interações. Uma única ‘live’ sobre o auxílio emergencial provocou 1,7 milhão de reações de internautas interessados em saber o que deveriam fazer para obtê-lo.
Não é preciso uma grande parafernália digital para entender a temperatura do discurso político hoje. Em dois cliques, Fernandes, que optou por não trabalhar para políticos, fez uma busca comparativa no Google e concluiu que, nos últimos sete dias, a procura pelo termo ‘emprego’ foi equivalente a 10% daquela do ‘auxílio emergencial’.
Esta estratégia indica que o presidente Jair Bolsonaro terá dificuldade em interromper o benefício em 30 de maio, quando se concluem os três meses inicialmente programados para sua duração. O Ministério da Economia já tratou de desmentir o secretário Carlos da Costa, que acenou com sua prorrogação, mas ainda não mostrou como vai ser capaz de equacionar uma saída fiscal sem retirar do presidente sua blindagem política. Ao buscar a paternidade do auxílio, Bolsonaro continua à sombra de Donald Trump, cuja assinatura estampa os cheques destinados aos americanos de baixa renda desempregados pela pandemia. Não é capaz de fazer com que os mais pobres aprovem a irresponsabilidade de sua conduta na pandemia, mas o apoio a seu governo hoje se deteriora entre os mais ricos numa velocidade maior do que na base da sociedade.
Em três meses, a rubrica consumirá R$ 124 bilhões, o equivalente a quatro vezes o gasto do ano inteiro com o Bolsa Família. Como a economia dificilmente recuperará, até 2022, o vôo de galinha que manteve em 2019, a blindagem do auxílio emergencial, para ser eficiente, teria que ser estendida para além da sanidade fiscal.
O auxílio emergencial foi uma joint-venture Bolsonaro/Congresso. O governo propôs R$ 200. O PT sugeriu um valor dez vezes maior e o relator, do PP, fechou em R$ 500. O presidente cobriu a proposta e fixou em R$ 600. O valor aprovado segurou o comércio e conteve a queda na arrecadação. Acabou por equilibrar a redução, estabelecida pelo Senado, ao projeto de compensação a Estados e municípios pela perda de receita aprovado na Câmara.
No início do seu mandato, o presidente ouviu de um senador o vaticínio de que o arrocho do ministro Paulo Guedes o transformaria num novo Maurício Macri, o presidente argentino que perdeu a reeleição por ter reagido tarde demais à recessão provocada por sua política econômica.
Frente à armadilha do auxílio emergencial, há duas saídas. Uma é que Bolsonaro pague pra ver se o senador estava certo, interrompa o benefício e corra o risco de nem mesmo chegar à reeleição. A outra é aquela em que Congresso e Bolsonaro tornam-se mutuamente reféns do auxílio emergencial. Numa releitura da solidariedade da pandemia, é a ordem de que ninguém solta o mandato de ninguém. Pelo menos até a eleição municipal.