A versão de que o presidente se referia à sua segurança pessoal não se sustenta, pois quem cuida dela é o GSI
A novela da reunião ministerial só terá seu fim se o ministro Celso de Mello autorizar a divulgação integral do vídeo. Só assim será possível entender o contexto em que as frases foram ditas.
Além do mais, a disposição do presidente Jair Bolsonaro de distribuir uma versão oficial editada dos melhores momentos contribui para toldar mais ainda o ambiente político.
A versão de que o presidente se referia à sua segurança pessoal não se sustenta, pois quem cuida dela é o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), chefiado pelo General Augusto Heleno com homens do Exército e da Agência Brasileira de Inteligência (Abin).
Se sua insatisfação fosse nesse âmbito, quem deveria ter sido demitido seria o General, não Moro. E o delegado Alexandre Ramagem, chefe da Abin. Ao contrário, Ramagem foi indicado por Bolsonaro para comandar a Polícia Federal, com vastos elogios.
Essa versão, que surgiu do nada, de repente, após a exibição do vídeo, foi corroborada pelo chefe do Gabinete Civil, General Braga Neto. Mas não casa com o que aconteceu depois da reunião. O então ministro Sergio Moro, logo depois da reclamação do presidente em termos agressivos, deixou a reunião.
Depois, procurou os três ministros de origem militar que trabalham no Planalto – General Augusto Heleno, General Braga Neto e General Luiz Eduardo Ramos – para mostrar sua indignação com a tentativa de Bolsonaro de intervir na Polícia Federal. Segundo confirmação nos depoimentos, os ministros palacianos pediram que ele se acalmasse, e aceitasse as mudanças.
Se tivessem entendido que a preocupação do presidente era com sua segurança pessoal, por que não tentaram acalmar Moro dizendo que a reclamação não era contra ele, mas contra o General Heleno?
Além do mais, Bolsonaro admite que falou em segurança de seus familiares e aliados. Desde quando aliados do presidente têm direito a segurança institucional? Não é bom esquecer a mensagem que Bolsonaro enviou a Moro, com uma informação do site O Antagonista reproduzindo uma notícia sobre uma coluna minha que informava que 10 a 12 deputados bolsonaristas estavam na mira da Policia Federal no inquérito do Supremo sobre fake news. Bolsonaro escreveu: “Mais um razão para a mudança”.
Tudo indica que será difícil arquivar esse processo, pois as provas se acumulam. O constitucionalista Gustavo Binemboim, muito antes do caso do vídeo da reunião ministerial, escreveu um artigo em que explica os padrões decisórios consolidados para situações de incerteza no direito processual penal: in dúbio pro societate (em dúvida, a favor da sociedade), pelo recebimento da denúncia, no início do processo; in dúbio pro réu (em dúvida, a favor do réu) quando do julgamento final.
“Na instauração da ação penal, prefere-se correr o risco de processar suposto inocente a inocentar possível culpado. No veredicto final, havendo dúvida razoável, prefere-se inocentar eventual culpado a condenar virtual inocente”.
O Procurador-Geral da República, Augusto Aras, é o dono da ação penal, e cabe a ele fazer uma denúncia ao Supremo Tribunal Federal (STF) ou arquivar o processo. Ele está pressionado pelas duas partes. Por um lado, a pressão interna dos procuradores é pela denúncia, depois de terem visto o vídeo e interrogado as testemunhas. Há informações de que, ao receber os primeiros detalhes sobre o vídeo, o Procurador-Geral soltou um palavrão de espanto diante dos relatos.
De outro lado, o Palácio do Planalto pressiona Aras com recados indiretos. O presidente Bolsonaro teria comentado com pessoas próximas que o Procurador-Geral seria um bom nome para uma vaga do Supremo Tribunal Federal, mas a indicação dependeria de sua atuação.
Toda investigação é um quebra-cabeça que vai sendo montado peça por peça, e se alguma for esquecida, não se forma a figura final. O Procurador-Geral da República, por isso, não pode deixar de levar em conta as atitudes pregressas do presidente Bolsonaro, que desde agosto fala publicamente que queria mudar a superintendência da Polícia Federal do Rio. E também não pode deixar de analisar o ambiente todo da reunião ministerial.
Bolsonaro disse que em nenhum momento se referiu à Policia Federal, já os ministros Braga Neto e Luiz Eduardo Ramos dizem que ele falou, sim, mas em outro momento da reunião, em outro contexto. É preciso ver o vídeo inteiro para juntar as peças do quebra-cabeça. Um bom passatempo na quarentena.