“Falta quem lidere a moderação”, diz general sobre crise
A crise política insuflada pelo próprio presidente da República cresce no mesmo ritmo e proporção que a acentuada curva em ascensão da pandemia da covid-19 no Brasil. Na contramão, a inflexão para baixo verificada nos últimos dias foi a da popularidade presidencial.
Segundo a pesquisa XP/Ipespe divulgada ontem, a aprovação de Bolsonaro caiu quatro pontos percentuais em uma semana (até 30/4), desde o pedido de demissão do ex-ministro Sergio Moro. No mesmo período, o número de casos confirmados e óbitos provocados pelo coronavírus dobrou. Eram 3.704 vítimas fatais em 24 de abril; ontem esse número subiu para 7.288.
É um círculo vicioso e infeccioso: os minicomícios dominicais que atentam contra a democracia (e agora contra a liberdade de imprensa) elevam a temperatura política e violam a quarentena; essa violação gera aglomerações, que podem levar ao aumento dos casos de covid-19; o incremento dos casos obriga governadores a prolongarem a quarentena, o que mantém o comércio fechado, acirra a crise econômica e a política e estimula os minicomícios com o presidente; esses minicomícios violam a quarentena e causam aglomerações, que aumentam os casos da doença.
No domingo, a reedição dos atos antidemocráticos com a participação do presidente Jair Bolsonaro, apenas 15 dias depois do evento cobrando intervenção militar, voltou a gerar desconforto e contrariedade entre políticos e militares. Em paralelo, contudo, prevalecia um sentimento de resignação: no curto prazo, a saída institucional é conviver com a ousadia e recalcitrância presidencial.
O presidente já foi aconselhado a não estimular nem participar desses atos, mas faz ouvidos moucos. “Não adianta, Bolsonaro não vai mudar”, sentenciou à coluna um cacique político com trânsito nos três Poderes. “É o que temos para o jantar”, completou, num esgar. Esta liderança diz que será preciso “administrar” os atos do presidente, e no caso de eventuais arroubos autoritários, acionar os freios e contrapesos institucionais.
Esse mesmo cacique ressalva que não há ambiente político para impeachment. A aprovação popular do presidente vem erodindo, mas não o suficiente para perder a base de sustentação que tenta construir com o Centrão. “27% de aprovação é considerável, não acha?”, diz o aliado, citando a pesquisa XP/Ipespe. Ele observa que Bolsonaro, na prática, mantém os mesmos 30% de apoio popular, porque a margem de erro do levantamento é de 3,2%, para mais ou para menos.
“O silêncio é quem deve falar mais alto”, disse ontem um general integrante do governo abordado pela coluna para comentar os atos de domingo. A insistência de Bolsonaro em tentar vincular as Forças Armadas à sua imagem pessoal desagrada a cúpula, porque o esforço é para esclarecer que são instituições de Estado, e não de um governo.
Mesmo que alguns generais concordem com Bolsonaro de que o STF se excedeu no veto a Alexandre Ramagem e à expulsão dos diplomatas venezuelanos, é um desgaste para o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, divulgar uma nota oficial, a cada 15 dias, reafirmando o compromisso das Forças Armadas com a democracia e a Constituição. “As Forças Armadas cumprem a sua missão Constitucional”, reforçou o comunicado de ontem.
Para este general, é importante ficar claro que “não há ambiente para mais crises”. Entretanto, este oficial ressalta que “falta alguém para liderar essa moderação”. A mesma ausência foi apontada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ontem em live do Valor. “Estamos com uma crise de liderança (…) precisamos de alguém que dê a palavra de coesão”, cobrou o líder tucano.
O agravante nessa conjuntura é que a escalada da pandemia no país, que deveria protagonizar o debate público, virou pano de fundo da turbulência política. Enquanto Bolsonaro acelerou a troca de comando da Superintendência da Polícia Federal no Rio de Janeiro, a cada semana o sistema de saúde de um Estado entra em colapso.
Depois de Amazonas, Pará e Rio de Janeiro, nesta semana o alerta sanitário chegou ao Amapá, base eleitoral do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM). Dados da Fiocruz mostram que em 30 de abril, havia 171,9 casos confirmados por 100 mil habitantes no Amapá. Ao lado, no Amazonas, esse índice era de 158,8/100 mil, e em São Paulo, de 65,6/100 mil.
Enquanto Bolsonaro conclama a abertura das lojas, nos últimos dias, os governadores Helder Barbalho (Pará), e Paulo Câmara (Pernambuco), decidiram decretar “lockdown” em Belém e Recife para tentar conter a escalada de mortes.
Ontem houve acenos do STF de distensionamento: o ministro Marco Aurélio Mello propôs uma alteração no regimento para que pedidos de liminar envolvendo atos do Executivo ou do Congresso sejam apreciados pelo plenário, sem possibilidade de decisão individual. Incomodou Bolsonaro que o veto a Ramagem partisse de uma decisão sem o respaldo do colegiado.
Em contrapartida, não houve gestos públicos de Bolsonaro para aliviar a tensão. Ele ainda levantou dúvidas sobre as agressões físicas e verbais de seus apoiadores contra os jornalistas que trabalhavam na cobertura do evento.
Em uma crônica dos anos 70, Carlos Drummond de Andrade descreveu um embate entre o trocador e um passageiro, que violou a portaria sobre roupas de banho no ônibus. Invocando a obediência à lei, a disciplina e o senso de coletividade, o trocador pediu que o passageiro viajasse de pé, para não encharcar o banco e permitir que outra pessoa seca pudesse ocupar o assento.
“Não é água de mar, é suor”, retrucou o passageiro, alegando que não estava molhado, e sim, suado. Mas o trocador adverte que segundo a portaria, os recalcitrantes devem se retirar. O passageiro reagiu: não admitiria ser chamado de “réu-não-sei-o-quê” porque não era bandido. E não arredou o pé, ou melhor, o traseiro.
Equipare-se o banhista ao presidente da República e serão dois recalcitrantes, violando normas que miram o bem coletivo, como a quarentena. No caso do presidente, o quadro se agrava devido à estatura do cargo e à responsabilidade pela saúde e bem estar de 200 milhões de brasileiros.