Congresso espera o avanço de apurações que envolvem o presidente e seu entorno para dar andamento a impeachment ou CPIs. Nos bastidores, cúpulas dos dois poderes avaliam conjuntamente cenários
Afonso Benites, do El País
O Supremo Tribunal Federal entrou mais uma vez de cabeça em uma crise política que envolve o Palácio do Planalto. Enquanto, de momento, Rodrigo Maia, presidente da Câmara, não dá sinais de que se moverá para dar andamento aos quase 30 pedidos de impeachment contra o presidente Jair Bolsonaro e tampouco ele ou o comando do Senado se mostram dispostos a instaurar comissões parlamentares de inquérito (CPIs) contra o Governo, coube ao Judiciário confrontar mais uma vez o mandatário, que tem participado de atos contra a democracia e desrespeitado orientações de autoridades sanitárias enquanto o país assiste à escalada da pandemia do coronavírus. O ministro do Supremo, Alexandre de Moraes, decidiu conceder um mandado de segurança impedindo o presidente de nomear o delegado Alexandre Ramagem, amigo dos Bolsonato, como diretor-geral da Polícia Federal. A Advocacia-Geral da União decidiu não recorrer, mas o presidente não está convencido: “É dever dela recorrer”.
Ainda não está claro como Bolsonaro realizará o “sonho”, como ele descreveu, de colocar Ramagem no comando da PF. À espera dos próximos lances no imbróglio, há intensa movimentação nos bastidores entre lideranças do Legislativo e do Judiciário em Brasília. Desde que Bolsonaro participou de uma manifestação a favor de um golpe militar, no dia 19 de abril, ao menos duas reuniões entre ministros do STF e representantes da cúpula do Congresso ocorreram fora das agendas oficiais. Nos encontros, debateram o cenário político e os próximos passos que cada poder poderia dar. A orientação para o momento é de cautela. Deputados e senadores devem esperar para ver o quanto avançam três apurações no Supremo que podem envolver o presidente, seus familiares e deputados que o apoiam para decidir como agir.
Uma das apurações em andamento na Corte é baseada nas acusações do agora ex-ministro da Justiça Sergio Moro, que acusou o presidente de tentar interferir politicamente na Polícia Federal ao trocar seu diretor-geral. A outra é a que investiga quem são os parlamentares e empresários bolsonaristas que deram suporte aos atos de 19 de abril, considerado um crime contra a lei de segurança nacional. E a última tem como um dos principais alvos o vereador Carlos Bolsonaro, um dos filhos do presidente que é suspeito de liderar uma milícia virtual responsável por espalhar notícias falsas contra as instituições e que acabam beneficiando o presidente.
Esse último inquérito é considerado inconstitucional por dezenas de juristas, porque ele foi aberto pelo próprio STF “de ofício”, ou seja, sem ser instado a fazê-lo, no ano passado. Mas, como um interlocutor do STF e outro do Congresso disseram à reportagem, a conveniência política vai se refletir na sobrevivência do Governo Bolsonaro. “Se for conveniente usar esse inquérito para derrubar o presidente, ele será usado”, afirmou um parlamentar, antes de ressaltar que ainda não há clima pra destituir o chefe do Executivo.
Essas movimentações têm incomodado o mandatário. Nesta quarta-feira ele mandou recados e, pela terceira vez em menos de uma semana, precisou dizer que era ele quem mandava em seu Governo. Quando questionado sobre o anúncio da Advocacia-Geral da União de que não recorreria do veto de Alexandre de Moraes a Ramagem, disse a repórteres: “Quem manda sou eu e eu quero o Ramagem lá”.
Antes, ao dar posse a dois novos ministros, André Mendonça (Justiça), e José Levi Mello do Amaral Júnior (Advocacia-Geral), o presidente ainda disse que a Constituição prevê que os três poderes são independentes e harmônicos. “Não posso admitir que ninguém ouse desrespeitar ou tentar desbordar a nossa Constituição”, afirmou Bolsonaro na cerimônia em que dois ministros do STF estavam presentes, o presidente Antonio Dias Toffoli e Gilmar Mendes. Elogiou ambos, assim como o presidente do Superior Tribunal de Justiça, João Otavio de Noronha, com quem diz estar “aprendendo muito” sobre o mundo jurídico. Na mesma cerimônia, afirmou mais uma vez que não desistiu de nomear Ramagem para o cargo. “Gostaria de honrá-lo no dia de hoje, dando-lhe posse. Esse sonho meu, e mais dele, brevemente se concretizará”, disse.
STF na linha de frente
Independentemente do desdobramento, há a percepção de que, com o veto a Ramagem, o mal-estar entre Supremo e Planalto mudou de nível. A julgar pelos últimos dias, em Brasília, a avaliação entre parte da classe política é o confronto com o STF voltará a ser o normal daqui para frente. Antevendo a escalada da crise, influenciadores bolsonaristas nas redes sociais têm mais uma vez incentivado a publicação da hashtag “STF Vergonha Nacional” e disseram que as decisões da Corte eram políticas. É um discurso semelhante ao adotado por petistas quando o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi impedido por Gilmar Mendes de assumir a chefia da Casa Civil na gestão Dilma Rousseff (PT), em 2016, porque o magistrado entendeu que ele estaria usando o cargo para se blindar de investigações policiais das quais era alvo.
O caso de Lula mostra que não é primeira vez que o Supremo entra em cheio em uma crise política —ainda que a ação da Corte para barrar nomeações estejam longe de ser um consenso no meio jurídico. Se o STF barrou o petista e agora Ramagem na direção da PF, Michel Temer (MDB) teve o aval para nomear seu correligionário Wellington Moreira Franco, então investigado pela Operação Lava Jato, para a Secretaria-Geral de Governo em 2017.
Sob Bolsonaro, o Supremo já deu várias mostras de que atuará para conter o que considerar “excessos”. A Corte já impediu o presidente de subordinar a Funai (Fundação Nacional do Índio) ao Ministério da Agricultura, por exemplo. O próprio ministro Alexandre de Moraes também já decidiu que Bolsonaro não pode decidir sobre reabertura de comércios e, antes mesmo do veto desta quarta, já havia blindado os delegados que cuidam do inquérito das fake news no Supremo: o comando interino da PF não pode mudá-los.
Seja como for, o presidente sabe que não precisa, necessariamente, se movimentar tanto para garantir Ramagem na função, porque já o tem na Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) e porque o ministro da Justiça, a quem a PF é subordinada, declarou lealdade a ele. Em seu discurso de posse, Mendonça chamou Bolsonaro de “profeta no combate à criminalidade”, disse que pretende, no ministério, ser um “líder servo”.
Os movimentos de Bolsonaro na PF têm incomodado policiais experientes, que cobram mudança no processo de escolha do diretor-geral e entendem que ele poderia ter um mandato para não ficar dependente do interesse político da ocasião. Nos últimos três anos, já foram quatro trocas de dirigentes. “Ramagem é tido como uma pessoa capaz. Ele não é um alienígena na PF, mas a situação em que é feita a troca precisa mudar urgentemente”, disse o presidente da Associação dos Delegados da Polícia Federal, Edvandir Paiva. Na avaliação dele, Bolsonaro precisa parar de buscar confrontos institucionais. “Se o presidente não compreender o papel do estadista e da instituição do Estado, vai haver atrito o tempo inteiro”