É difícil falar hoje em dia de cinema, dado que o grande thriller atual no Brasil é a postura irresponsável do presidente na condução da quarentena – quase um filme de terror – e, também, a sua conduta política, cada vez mais radical e estreita, sempre em direção à direita, deixando a nu suas reais intenções políticas e os interesses pessoais por trás dos movimentos que faz. Muitos fãs que apostaram neste roteiro macabro já se decepcionaram e pedem a devolução dos ingressos, alguns até com manifestação de apupos pelas janelas de suas casas. Outros, que nunca gostaram do canastrão escalado para o papel principal e tampouco dos atores coadjuvantes, seguem torcendo o nariz para esta chanchada que deixaria os geniais Oscarito e Grande Otelo envergonhados, tal a tacanhice das ideias expostas. Os próximos dias serão de grande suspense.
O que estamos assistindo não é um filme, mas uma sucessão de episódios cujo desdobramentos são ainda imprevisíveis na vida real. Já na telinha nossa de cada dia a que estamos sujeitos por conta da pandemia, é possível assistir filmes – e séries – melhores do que a conjuntura nos tem reservado.
Uma boa dica que estreou esta semana no Now é “1917”, filme que concorreu ao Oscar de 2020. Indicado em 10 categorias, acabou levando três estatuetas, sendo a mais importante delas a de fotografia – realmente exuberante – conferida a Roger Deakins, um veterano de indicações.
O filme tem um tênue fio condutor, apesar de ter concorrido à categoria de roteiro original. Dois soldados na Primeira Guerra Mundial (1914-18), recebem ordens de um general para entregar uma carta a um coronel que se encontra no front, avisando que aborte um ataque aos alemães, pois o aparente silêncio dos germânicos trata-se na verdade de uma emboscada.
A Primeira Guerra teve enormes baixas: 17 milhões de pessoas morreram no conflito. Os soldados muitas vezes passavam meses entrincheirados, em condições insalubres, e avançavam muito pouco em suas posições. É neste cenário que começa a, digamos assim, “corrida de obstáculos” dos jovens combatentes por entre as trincheiras da Tríplice Entente no norte da França.
Assim como os protagonistas de posse da carta saem em disparada serpenteando os tuneis repletos de soldados, a câmera que os acompanha na ação também não para: registra as imagens como se ela em si fosse um terceiro mensageiro, enfrentando lado a lado as peripécias e surpresas que a dupla encontra pelo caminho. Este é o grande diferencial do filme, realizado como um único plano sequência, mas também seu calcanhar de Aquiles. A “mise-em-scène” é excelente: centenas de figurantes são estrategicamente posicionados por onde a câmera passa, numa encenação naturalista de poucos diálogos e muita ação que mobiliza uma estrutura enorme para que tudo aconteça conforme a história avança. Deste ponto de vista, irrepreensível.
Nos dias de hoje não precisa ter frequentado escola de comunicação para saber que cinema é imagem em movimento. Todo mundo sabe, mesmo que não formule teoricamente, já que nosso código de mensagens é cada vez mais audiovisual. Cinema é linguagem.
No início do cinema não era a câmera que se movimentava, mas o personagem. Buster Keaton, com suas alucinadas correrias e Chaplin, na figura de Carlitos, o adorável vagabundo que vive fugindo da polícia, sempre derrapando ao dobrar uma esquina, são exemplos clássicos.
O desenvolvimento tecnológico permitiu trilhos que evitavam a trepidação durante os movimentos e câmeras mais leves possíveis de serem carregadas e que dispensavam o uso do tripé. O cinema ganhou mais dinâmica: os “travellings” e a câmera na mão passaram a fazer parte da linguagem. Mais recentemente, o trilho foi ficando para trás com o advento do “steadicam”, um estabilizador de câmera inventado em 1974, em que o fotógrafo entra dentro de uma estrutura de contrapesos que estabiliza a imagem. Hoje, tudo ficou mais leve e portátil.
O primeiro filme comercial a usar o “steadicam” como linguagem creio que foi ‘O Iluminado”, de Stanley Kubrick, baseado em obra de Setphen King, com seus “travellings” aterrorizantes pelos enormes corredores de um gigantesco hotel vazio no inverno, enquanto o personagem de Jack Nicholson enlouquece.
Planos-sequências são algo comum no cinema. São vários os exemplos. Talvez o mais famoso seja o de abertura de “A Marca da Maldade” (1958), de Orson Welles, uma obra-prima. Hitchcock filmou “Festim Diabólico” sem cortes, em planos-sequências até onde os chassis dos negativos permitiam. Filmou em ambiente fechado, o que facilita o ensaio dos atores.
A novidade de “1917” é realizar um filme inteiro quase que em locação ao ar livre, com centenas de figurantes. Algumas sequências ocorrem somente entre os dois soldados, ou nos tuneis das trincheiras ou em uma fazenda francesa. É uma façanha. E retrata muito bem, com direção de arte impecável, as condições terríveis da “guerra de posição”, como ficou conhecida a tática empregada do avanço lento e progressivo das posições estratégicas na Primeira Guerra.
O problema pela ousadia do uso do plano-sequência do início ao fim do filme é que ele, por privilegiar o meio ambiente em que a ação se desenvolve, acaba por distanciar o espectador da emoção do personagem. Ele sobrevive a tiros, bombas, granadas, explosões, cadáveres em profusão, corpos em putrefação, incêndios, ratos famintos, amigos mortos, civis em condições degradantes, sodados mutilados. Apesar do cenário tétrico que a Primeira Guerra engendrou, a sensação de dever cumprido ao final do filme, quando o personagem consegue afinal descansar, se sobrepõe aos horrores da carnificina que vivenciou. Seu esgotamento psicológico é imenso, mas tem pouco espaço. Sua “corrida de obstáculos” terminou.
Tecnicamente o filme é incontestável. A direção das cenas que envolvem centenas de pessoas, sua coordenação de movimentos, merece aplausos. Só por isso o filme merece ser visto. Uma aula de como o cinema avança impulsionado pelos avanços tecnológicos, superando marcos referencias e permitindo o desenvolvimento da linguagem.
Recomendo.