Se tentasse agir fora dos limites da lei, o Poder Executivo seria contido pelas instituições
Quem estava atribuindo a última das crises governamentais ao estilo do presidente da República e ao conflito entre Jair Bolsonaro e o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta não perdeu por esperar além de um par de dias. O presidente já está desautorizando o ministro recém-empossado, Nelson Teich, e desafiando o compromisso do novo ministro com uma atitude cautelosa e baseada em fatos comprovados, de revisão da política de isolamento.
Os menos pessimistas esperavam que, afastado o ministro que seria um suposto desafeto, Bolsonaro deixaria a política de combate à pandemia em mãos da autoridade competente, aliás, declaradamente em “alinhamento completo” com ele, e assumiria como prioridade total a gestão da crise sanitária, social e econômica provocada pela pandemia. Mas sua conduta depois da demissão de Mandetta parece ser não mais a de combate à política identificada com seu ex-ministro, mas a de insatisfação com as instituições da República.
No domingo Bolsonaro liderou um comício em praça pública não para protestar contra o isolamento, como vinha fazendo, mas, como disse, a fim de dar sua vida “para mudar o destino do Brasil”. Em seu discurso, em palanque improvisado da caçamba de uma picape, deu um passo a mais em sua verdadeira campanha contra o Congresso, o Supremo, os partidos políticos e mesmo contra a Constituição, não só com palavras, mas também com condutas pouco apropriadas ao papel presidencial no Estado Democrático de Direito.
Em poucas palavras, expressou teses esdrúxulas sobre a democracia, como o conceito equivocado de que “todos estão submissos à vontade do povo”. Nas democracias, o povo não submete nem é submisso à vontade de ninguém. Só se submete à Constituição, que garante a sua liberdade e emana dele próprio, o povo.
O contexto do discurso, as palavras de ordem implícitas que não vêm de hoje – como o fechamento do Congresso, do Supremo Tribunal Federal e dos partidos, e a substituição da Constituição pelo famigerado AI-5 – são questões graves. Evidenciam que, para Bolsonaro e seus seguidores, as autoridades legitimamente eleitas devem submeter-se a uma massa rebelada comandada por ele, que se compromete a fazer não tudo o que a Constituição permite, mas “tudo o que for necessário” – linguagem da política associada à da violência.
O povo brasileiro reconquistou sua liberdade em 1985, pelo voto popular, com imensas manifestações políticas – a campanha das Diretas-Já – e uma negociação realista entre praticamente todas as tendências da oposição, que escolheram Tancredo Neves e puseram fim a um longo período de regime autoritário. A Constituição de 1988, cuja legitimidade veio do voto popular, estabelece que a representação do povo, que se expressa nas urnas, e não em carreatas, é prerrogativa compartilhada pelo Legislativo e pelo Executivo. Qualquer medida de força contra o Congresso equivaleria a tentativa de golpe.
Talvez os inspiradores do presidente – não por acaso dotados de escassa experiência de vida pública, com pouco ou nenhum conhecimento da gestão de governo e nenhuma capacidade para avaliar tanto obstáculos reais como a resiliência dos que tratam como adversários – tenham elucubrado uma tática de provocar o Parlamento, com o propósito de induzi-lo a erro e justificar um golpe de força contrário.
Mas o Congresso, cuja experiência mediana de vida pública é considerável, incluindo familiaridade com a gestão de governo, e muitas vezes décadas de habilidades para fazer e receber concessões, não deverá cair nessa arapuca. Ao contrário, poderá exercer os freios e contrapesos que a Constituição lhe outorga para se contrapor a eventuais deslizes do presidente.
Talvez o primarismo das táticas de alguns dos inspiradores da Presidência os conduza ao devaneio de um golpe com apoio militar. Tratar-se-ia de uma perfeita manifestação de alienação do que hoje representam as Forças Armadas brasileiras, institucionalmente comprometidas com o Estado Democrático de Direito e com suas responsabilidades de manutenção da ordem interna e da defesa externa do País. Elas dispõem de uma oficialidade altamente preparada, disciplinada e hierarquizada, que repelirá qualquer tentativa contra a ordem democrática, como – fique bem claro – seus dirigentes têm tornado público inúmeras vezes.
Caso tentasse agir fora dos limites da lei e em desrespeito à Constituição, o Poder Executivo seria contido pelas instituições. Para tanto os cidadãos brasileiros contam com o Supremo Tribunal Federal, um Poder que fala pela Constituição e se há de pautar pela absoluta neutralidade partidária, ideológica e religiosa na imposição da lei.
Uma certa perda de confiança do Parlamento no presidente vem se avolumando desde sua eleição e a ela se soma um começo de desgaste de sua popularidade, uma vez que ele criou expectativas altas sem que as razões do descontentamento popular com os serviços públicos essenciais fossem bem enfrentadas por seu governo. Com popularidade relativamente menor e desconfiança do Parlamento, Bolsonaro terá de mudar, pois a democracia brasileira ele não mudará.
*Senador (PSDB-SP)