A tribalização cresceu durante a pandemia
Haters são tipos antigos. Ainda lembro da leitura de Robert Darnton e seu belo “O Diabo na Água Benta”, contando a história dos caluniadores profissionais na França do século 18.
Muitos viviam no exílio, em torno da Grub Street e no submundo literário londrino, fazendo fluir a partir daí uma rede sórdida de libelos e panfletos que está na raiz da moderna imprensa sensacionalista.
No mundo atual tudo se vulgarizou. Pesquisa conduzida pelo Pew Reseach Center mostra que 41% das pessoas já sofreram algum tipo de bullying digital e que a orientação política é, de longe, o maior motivo.
O hater tende a ser um dualista moral. Ele imagina, como tentaram mostrar Jonathan Haidt e Greg Lukianoff em seu “The Coddling of American Mind”, que a vida é uma luta entre pessoas do bem e pessoas do mal, entre a verdade e o erro, e que ele representa o primeiro time. Vem daí, em última instância, seu direito de julgar e ofender.
O hater é, em regra, um covarde. Seu primeiro esconderijo é o anonimato. Isso vem de longe, mas ganhou escala infinita no mundo digital. Seu segundo esconderijo é a irrelevância. Agride porque tem pouco a perder. Ninguém lhe dará muita bola nem lhe cobrará nada. Seu terceiro esconderijo é a tribo. Ele fala e escreve para a turma dos “especialistas na própria opinião”. Vive em uma banheira morna feita de viés de confirmação.
Haters não pertencem a esta ou àquela ideologia. No Brasil de hoje, é uma experiência antropológica interessante visitar grupos de radicais governistas e antigovernistas e ver como o haterismo se comporta.
Em ambos, o sistema está prestes a ruir. A divergência é para que lado. A linguagem é surpreendentemente parecida. Os palavrões variam, mas são sempre abundantes. Há alusões a animais (gado, jumento) e à tediosa terminologia do século 20 (comunistas, neoliberais).
Como previsível, ambos os grupos consideram que o estranho e a barbárie ficam sempre do outro lado. A alusão ao debate politico brasileiro é lateral. O haterismo não depende de conteúdo. É um problema de forma.
Sua expressão mais banal é a falácia ad hominem, atestado mais claro de que alguém não dispõe de argumento nenhum. Curiosamente, ela é o pão de cada dia de nosso debate público. Para ver a enrascada em que nos encontramos. E lembrar de Umberto Eco.
Há uma ampla literatura sobre as raízes do haterismo na psicologia humana. Uma boa referência é o livro de Hugo Mercier e Dan Sperber, “The Enigma of Reason”. Sua tese diz que a mente humana evoluiu para guerrear por ideias, para justificar nossas ações, conduzir a tribo e destruir a tribo do outro.
O kantismo e sua racionalidade universalista, apelo à imparcialidade e à disciplina no “uso público da razão” seriam uma espécie de antinatureza. A razão iluminista pode expressar o que temos de melhor, mas é rara. Aqui no chão rondamos o estado de natureza.
A internet, por fim, piorou tudo. Sua marca é a reação imediata e não reflexiva. No mundo pré-digital, as instituições produziam alguma moderação nas opiniões. Seu tempo era diferente e nos obrigava a filtros e a algum tempo de espera.
Nas mídias sociais de hoje, muito antes de baixar a curva da raiva já tuitamos duas ou três vezes. Tudo em um ambiente de baixa empatia, destituído de pessoas de carne e osso, que olham na nossa cara, transpiram e com a qual podemos nos identificar.
Por fim, uma máquina de não esquecimento. O inferno de Nietzsche, feito da permanente lembrança de velhos ressentimentos. Estranho mundo em que os contextos mudam, mas as imagens e palavras estão lá congeladas no tempo. Cada gesto, cada erro ou acerto, tudo pronto a ser retirado do freezer, ao sabor da raiva da hora.
No início dessa crise, escrevi que a raiva e a tribalização da vida iriam crescer. As pessoas perderiam muito do contato pessoal e o país de cada um, pouco a pouco, se confundiria mais e mais com sua timeline.
Talvez tenha exagerado, mas temo que não.
*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.