À União compete coordenar ações, estabelecer regras e ofertar apoio material
A pandemia desencadeada pela Covid-19, que em poucos meses infectou e matou dezenas de milhares de pessoas em todo o mundo revelou, dentre outras coisas, as fraquezas e virtudes das diferentes formas de governança. Entre nós, serviu para testar os limites do federalismo adotado pela Constituição de 1988.
Do ponto de vista estrutural, existem basicamente dois tipos de Estado: “unitários” e “compostos”. Os primeiros apresentam apenas um centro de impulsão política. Seus súditos submetem-se a um único governo e ordenamento legal. As circunscrições em que se subdividem só possuem autonomia administrativa. Predominam em países com dimensões territoriais ou demográficas modestas e populações homogêneas.
Os compostos, sobretudo os federais, geralmente prevalecem em nações com tamanho maior e composição mais heterogênea. Fracionam-se em unidades territoriais dotadas de autonomia política. Por isso, seus cidadãos sujeitam-se simultaneamente às autoridades centrais, regionais e locais, cujas determinações e leis são obrigados a observar.
A federação é uma novidade histórica. Resultou da associação das 13 ex-colônias britânicas na América do Norte, tornadas independentes em 1776. Foi concebida para assegurar aos associados as vantagens da unidade, sem prejuízo de preservar as distintas particularidades. Mais tarde, constatou-se que também contribui para fortalecer a democracia, pois promove a desconcentração do poder e facilita a aproximação do povo com os governantes.
Inspirado na experiência dos EUA, o Brasil adotou o modelo em 1891, na primeira Constituição republicana. A partir de então, todas as Cartas políticas subsequentes o incorporaram, exceto a de 1937, sob a qual vicejou a ditadura getulista.
Ocorre que os estados-membros, desde quando foram instituídos, em substituição às antigas províncias imperiais, jamais foram dotados de poder e recursos compatíveis com suas necessidades, permanentemente concentrados no governo central. Já os municípios, embora também vítimas de uma crônica carência de meios, sempre dispuseram de considerável autoridade para regular assuntos de interesse local.
Para sanar esse desequilíbrio, a nova ordem constitucional adotou o denominado “federalismo cooperativo”, no qual União, estados e municípios passaram a compartilhar competências e rendas para buscar um desenvolvimento harmônico e integrado.
Tal evolução, à toda evidência, precisa ser levada em conta pelos diferentes níveis político-administrativos no combate à Covid-19. À União compete coordenar as ações, mediante o estabelecimento de regras gerais e a oferta de apoio material, porque lhe incumbe, a teor do artigo 21, inciso XVIII, da Lei Maior, “planejar e promover a defesa permanente contra calamidades públicas”.
Os entes regionais e locais não podem ser alijados dessa batalha, porquanto têm a obrigação de tomas as medidas necessárias para enfrentar a doença. Além de outras competências comuns que compartilham com a União, cabe-lhes “cuidar da saúde e assistência publica”, bem como “organizar o abastecimento alimentar” nos respectivos âmbitos de atuação, segundo o artigo 23, incisos II e VIII, do texto constitucional.
O federalismo cooperativo, longe de ser mera peça retórica, exige que seus integrantes se apoiem mutuamente, deixando de lado as divergências ideológicas ou partidárias dos respectivos governantes. A grave crise sanitária e econômica na qual nos debatemos atualmente demanda juízo, ponderação e responsabilidade de todos.
*Ricardo Lewandowski é ministro do Supremo Tribunal Federal e professor titular de teoria do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo