O problema da pobreza não atendida por programas sociais está nos grandes centros e capitais
O governo federal demorou a reconhecer que, diante de uma crise sem precedentes como a provocada pela pandemia do novo coronavírus, é preciso deixar de lado a austeridade fiscal e agir rapidamente para evitar uma tragédia econômica maior e mais longa. O isolamento social, adotado pelo Brasil e a maioria dos países como estratégia para conter a velocidade de contágio do coronavírus, está fazendo estragos no setor de serviços, afinal, há quase um mês, praticamente todo o comércio está de portas fechadas.
Se a situação já é difícil para lojas comerciais e de serviços médias e grandes, estabelecidas, formais, imaginemos como deva estar o pequeno negócio. Deduzimos, portanto, que a vida de uma pequena empresa formal não esteja nada bem, afinal, um dia sem faturar já impacta fortemente sua atividade. As empresas precisam vender para continuar operando. Só assim vão honrar o salário dos funcionários.
Imaginemos o quadro de milhares de firmas que funcionam na informalidade – mesmo sem saber, lidamos com muitas delas no nosso cotidiano, inclusive, algumas farmácias, algo inesperado da maioria. Nesse grupo, há o trabalhador autônomo, um contingente enorme de brasileiros, os equilibristas, cidadãos que vivem à margem do Estado e que, neste momento, já podem estar passando fome porque a possibilidade de trabalhar está suspensa. Estima-se que 40% da força de trabalho do país esteja nessa categoria.
A Ilha de Vera Cruz avançou bastante, desde a promulgação da Constituição em 1988, na criação de uma rede de proteção social. Todos sabemos que muito ainda precisa ser feito, que há gastos vultosos mal alocados e que é preciso avaliar os programas sociais existentes e melhorar muito a qualidade da despesa realizada. Mas, vejamos: numa crise aguda como a que vivemos, não se vê fome no interior do Nordeste, uma vez que a aposentadoria rural paga um salário mínimo a cada agricultor aposentado, independentemente do fato de ter contribuído ou não para o INSS.
O Bolsa Família, que paga benefícios muito menores, também cumpre papel importantíssimo na região Nordeste e, por essa razão, não se vê mais o cenário de fome e desterro comum à história daqueles Estados ao longo do século XX. Mas não nos enganemos: vivem no Nordeste 57,7% dos brasileiros em situação de extrema pobreza, isto é, com menos de R$ 145 por mês.
O problema da pobreza não atendida por programas sociais está nos grandes centros e capitais deste imenso território. Nesses locais, estão os brasileiros que vivem no mundo da informalidade. Achá-los para ajudá-los é tarefa urgente, não será nada fácil e pode não haver tempo suficiente para isso.
Instituído pela chamada PEC da Guerra, aprovada no último fim de semana pelo Senado, o benefício social temporário de R$ 600, com duração de três meses e renovável por mais três, é ambicioso (e justo) para o momento que a economia brasileira atravessa. O Senado estendeu a abrangência do auxílio, incluindo 19 categorias, como diaristas, caminhoneiros, pescadores, vendedores de acarajé, entregadores de aplicativos. Além disso, deu aos homens chefes de família o direito a duas cotas do benefício, como já estava previsto para mulheres que fazem o mesmo.
Quem tem direito ao benefício? O Congresso decidiu que os beneficiários devem ser os seguintes:
1. as pessoas inscritas no Programa Bolsa Família;
2. as que fazem parte do cadastro de Microempreendedores Individuais (MEI);
3. os contribuintes individuais do INSS;
4. as pessoas inscritas no Cadastro Único até 20 de março deste ano;
5. os trabalhadores informais que não façam parte de nenhum cadastro do governo federal.
Os beneficiários precisam cumprir alguns requisitos, como ter mais de 18 anos, integrar família com renda mensal por pessoa de até meio salário mínimo (R$ 522,50) ou renda familiar mensal de até três salários mínimos (R$ 3.135). Outra condição é não ter tido rendimento tributável, em 2018, superior a R$ 28.559,70.
Na primeira década deste século, o Brasil fez o dever de casa na área fiscal, tirou proveito do boom de commodities propiciado pela China e, assim, experimentou taxas de expansão econômica bem superiores às das duas décadas anteriores. Isso permitiu bancar programas sociais como o Bolsa Família e reduzir a pobreza, a desigualdade nem tanto. Em 2010, nosso PIB apareceu como o 6º maior.
Apesar do recuo, a pobreza seguia em 2010 como marca indelével da nossa sociedade. Três anos de recessão (2014-2016) profunda e outros três (2015-2019) de crescimento medíocre (média anual de 1,2%) aumentaram novamente a pobreza. Dados do IBGE mostram que, em 2018, havia 13,5 milhões de pessoas em extrema pobreza no país. O número, recorde, é superior à população da Bélgica e de Portugal. Em relação a 2014, houve incremento de 4,5 milhões de cidadãos, uma prova cabal do mal que más ideias na condução de uma nação podem provocar.
Esse é, em tese, o público-alvo do Bolsa Família. O universo da pobreza, porém, vai muito além disso. Uma iniciativa elogiável dos governos anteriores foi justamente criar um cadastro para identificar as famílias em situação de pobreza e extrema pobreza. Entram no Cadastro Único (CadÚnico) famílias em que os indivíduos ganham até meio salário mínimo por mês ou cuja renda mensal seja de até 3 salários mínimos.
O Cadastro Único tem registro de 29 milhões de famílias, algo como 76 milhões de pessoas, incluindo o universo do Bolsa Família, que atende a 14 milhões de famílias (44 milhões de beneficiários). Uma parte grande dos beneficiários será identificada por meio desse cadastro. Um outro contingente de beneficiários identificáveis está entre os que se enquadram como MEI e os contribuintes individuais do INSS.
Mas, e a maioria dos trabalhadores informais? “Estimativas de técnicos da área social apontam cerca de 20 milhões de pessoas, ou algo entre 15 milhões a 30 milhões, o grupo populacional fora do CadÚnico e do mercado de trabalho formal. Este é o contingente que precisa ‘ser encontrado’ pelo auxílio informal, o que significa um enorme desafio para um programa urgente e de curtíssimo prazo”, diz Luiz Guilherme Schymura, diretor do Ibre-FGV.