A transformação cultural estava em curso, de forma lenta. A pandemia pode acelerá-la.
Quando este nosso pesadelo coletivo passar e pudermos novamente ganhar as ruas, o mundo será outro. Nas últimas duas décadas, a ciência foi barbaramente questionada. Mas é a ciência que vai resolver o problema do novo coronavírus. Estamos há anos falando sobre ensino à distância, medicina à distância, trabalho por home office. E, no entanto, o processo de evolução é lento. Se passarmos mesmo alguns meses em quarentena, e é isto que tem cara de que vai acontecer, nossa relação com tecnologia e a natureza da economia se transformará de forma irreversível.
Alguns dos motivos são pragmáticos. Embora o presidente Jair Bolsonaro sugira por aí que, sem quarentena, a economia brasileira aguentaria o tranco, isto não é verdade. Porque a economia do mundo todo irá numa direção só. O Senado americano não acaba de aprovar um pacote de estímulo econômico no valor de 10% do PIB do país à toa. A nação mais conservadora do mundo no ponto de vista fiscal vai injetar US$ 2 trilhões na economia porque o tombo vai ser pesado. Ali do outro lado, quando tudo acabar, inúmeras empresas terão um problema de liquidez. Aí vão olhar para a quantidade de imóveis que têm. Ou para o preço do aluguel. Vão avaliar sua experiência com trabalho remoto. E não serão poucas que dirão: aprendemos algo. Este gasto em dinheiro é, ao menos, parcialmente desnecessário.
Quantos de nós não estamos descobrindo ferramentas como Zoom ou Google Hangouts, nos servindo em casa de uma taça de vinho ou de uma long neck e batendo papo com quem está à distância como se fosse uma mesa de bar?
É uma mudança cultural deste vulto que estamos para encarar. Não é apenas na vida profissional, é também na pessoal. Quantos de nós não deixamos por vezes de sair numa sexta à noite ou sábado com amigos porque o dinheiro está curto, porque temos que ficar com os filhos, por qualquer outro motivo? E quantos de nós não estamos descobrindo ferramentas como Zoom ou Google Hangouts, nos servindo em casa de uma taça de vinho ou de uma long neck e batendo papo com quem está à distância como se fosse uma mesa de bar. Na primeira é meio esquisito, mas aí vamos acostumando e de repente é rotina. Este não é um hábito que será perdido.
Em paralelo, os serviços de entrega entraram em colapso. De supermercados e farmácias tradicionais às startups de aplicativos. Ninguém tinha estrutura para aguentar uma realidade que se tornou quase toda online. Mas, como nos outros casos, este é um jogo de tempo. Quanto mais tempo ficarmos nesta situação, mais tempo os negócios vão se adaptar e mais nós nos acostumaremos. Em três meses, a maneira como se organizam vai mudar. Lojas físicas não vão desaparecer, mas haverá um boom dos serviços de entrega. Cada vez mais vamos preferir a comodidade de pedir online e deixar que os mantimentos venham a nós. Sim, já o fazíamos. É só que faremos mais.
Educação à distância não é novidade. Pesque qualquer adolescente que esteja próximo do Enem. Não há um que não assista aulas por YouTube ou não assine um serviço tipo Descomplica. Hoje, são supletivos. Complementam a aula, ajudam a reexplicar aquela fórmula que ficou mal compreendida na escola. Mas cursos universitários online não são absurdos. Neste exato momento, Stanford e Harvard, Yale e Princeton, as melhores dentre as melhores universidades americanas estão se direcionando rapidamente para a internet de forma a manter suas aulas.
Não é absurda a ideia de se formar numa das melhores universidades do mundo sem sair do interior do Piauí. É preciso entrar, claro. Mas sai muito mais barato.
Faz uma semana hoje que o historiador israelense Yuval Noah Harari publicou, no jornal britânico Financial Times, um longo artigo que mergulha nesta transformação cultural. Ela já estava em curso, de forma lenta. A pandemia pode acelerar a transformação digital do planeta.