Presidente mistura agressão política e medicina de WhatsApp em hora de crise aguda
Uma característica acompanha Jair Bolsonaro desde que ele era visto como um delírio de meia dúzia de apoiadores, antes da campanha eleitoral de 2018: a mentalidade de cerco, de bunker.
O agora presidente sempre pautou seu processo decisório, caótico, pela necessidade de criar uma rede de proteção baseada na existência do proverbial inimigo aos portões. Ora era o “sistema”, ora era a mídia, ora eram os outros Poderes.
Uma vez chefe do Executivo, provou-se por diversas vezes incapaz de assumir responsabilidades em momentos de crise, transferindo-as para esse Grande Outro hostil. Cambaleou até aqui, ainda mantendo respeitável apoio de um terço do eleitorado.
O pronunciamento da noite desta terça (24), no qual apareceu quase sorridente ao anunciar um futuro radiante de vitória da “nação brasileira” sobre versão local da pandemia do novo coronavírus, coroa esse movimento com uma dose extra de radicalismo quase insana —como se isso fosse possível. É um monumento ao pior que o bolsonarismo representa.
Após passar uma semana acuado pela reação à sua irresponsabilidade sanitária do dia 15, quando desceu para a galera que alegremente pedia o fechamento do Congresso e do Supremo do outro lado da praça dos Três Poderes, Bolsonaro parecia estar se controlando.
Por influência da ala militar do governo, pela enésima vez chamada a tentar colocar ordem no playground do Planalto, o presidente reduziu o grau de ataques a governadores e evitou a puerilidade ao tratar do coronavírus, que já matou 46 cidadãos governados por ele e vai matar muitos outros.
Uma coisa é discutir a racionalidade e o tempo certo de aplicação de medidas restritivas, como está sendo feito de forma escalonada em São Paulo, motor da economia nacional. É preocupação lícita. Outra coisa é brincar com o tema e falar estultices científicas acerca do efeito do vírus sobre crianças.
Ora, os pequenos podem se contaminar. Elas apenas morrem bem menos e, óbvio, são vetores do patógeno. O presidente usou rede nacional para emular um raciocínio primo daquele segundo o qual “tudo bem, só os muito velhos morrerão”.
Bolsonaro teve a pachorra de aplicar uma lição de medicina de WhatsApp, ao dizer que se, se teve contato com o vírus, nada lhe ocorreu devido ao seu “histórico de atleta”. Se desenvolvesse a Covid-19, seria novamente “uma gripezinha, um resfriadozinho”.
É inacreditável que, neste momento, o presidente use o púlpito eletrônico que lhe é facultado para renovar os ataques à imprensa, aos governadores, e aos ditos alarmistas. Refazer a narrativa, dizendo que estava preocupado desde o começo, mas “sem histeria”, vá lá, é do jogo. Não sei se engana mais alguém.
O som ensurdecedor de panelas e buzinas Brasil afora se fez presente novamente, especialmente em nichos bolsonaristas clássicos, mostrando que a infiltração na imagem presidencial sugerida por pesquisa do Datafolha tem uma avenida a percorrer.
O mundo parece hoje estar se dividindo entre duas classes de pessoas que ocupam lugares que já foram de líderes.
De um lado, os apocalípticos, amparados no fato de que as quarentenas são a única forma conhecida de reduzir a expansão do contágio —embora não haja certeza do que acontecerá uma vez que elas são levantadas; saberemos em breve em Wuhan.
Do outro, os integrados, para ficar na figura do ensaísta Umberto Eco. Esses são liderados por Donald Trump, que quer ver seus EUA “back to business” na Páscoa, Bolsonaro e o pânico de que uma recessão destrua seus planos de reeleição, e mesmo esquerdistas como o mexicano López Obrador e seu apego a abraços. Populismo não tem coloração ideológica.
No meio, como em todo o debate acerca da polarização mundo afora, a população e alguns governantes que ainda buscam agir racionalmente enquanto a ciência tenta entender melhor a natureza desse novo inimigo.
Por tantas incertezas, não é impossível que o vírus entre mais ou menos rapidamente no rol de riscos aos quais aceitamos nos submeter todo dia em que saímos de casa. Se isso for rápido, excelente, ainda que o preço a pagar seja ver Bolsonaro esbravejar com olhar maníaco uma vitória que nunca lhe pertenceu.
Se não for, a conta do impacto da epidemia lhe será debitada por uma população crescentemente insatisfeita. Na realidade, ela parece que já o está sendo de qualquer forma. A aposta de Bolsonaro é saltar no escuro, novamente, apoiado no irracionalismo político e pessoal.
*Igor Gielow é repórter especial, foi diretor da Sucursal de Brasília da Folha. É autor de “Ariana”.