Contaminação pelo coronavírus se generalizou, desestruturando a política, a economia, as relações sociais e a cultura dos países afetados. A grande questão é o que acontecerá quando o mundo voltar à normalidade
Não pretendo – nem teria estofo crítico-acadêmico para tanto – explicar, dimensionar e arriscar uma previsão da extensão da crise em que o novo coronavírus nos chafurdou. No espaço de poucos meses, uma onda de infecção vitimou homens e mulheres de todas faixas etárias, mas particularmente os idosos, não tardando a gerar óbitos em escala alarmante. Da China para o mundo, a contaminação se generalizou, desestruturando a política, a economia, as relações sociais e a cultura dos países afetados.
A hesitação dos primeiros momentos rápido cedeu o passo a medidas extremas, que, mesmo assim, não conseguiram impedir outras determinações ainda mais drásticas. Sem vacinas conhecidas para proteger as populações, para não mencionar informações confiáveis sobre as características da doença mortífera, optou-se pelo isolamento – das pessoas de seus locais de trabalho; de suas áreas de lazer, praias incluídas; de visitas ao shopping e a lojas em geral; de projetos de viagem, dentro e, sobretudo for, do país; até mesmo da caminhada vagabunda pelas ruas das cidades. As cenas apavorantes de centros urbanos livres das habituais multidões viralizaram e aproximaram a ciência ficção da vida dos cidadãos.
O fenômeno distinguiu-se de tantos outros do pós-guerra, quando, após o choque inicial da calamidade (os sacos plásticos no Vietnã, a crise em Biafra, o surto do ébola, a disseminação da Aids, os ataques aéreos “cirúrgicos” no Iraque, o fratricídio na ex-Iugoslávia, o tsunami no Sudeste asiático etc.), as pessoas apenas mudavam o canal da televisão e retomavam sua zona de conforto. O pavor agora é quando – e não mais se – a ameaça vier a bater em nossas portas, pondo em risco nossa vida, a de nossos familiares, amigos e conterrâneos; quando os remédios – de momento paliativos – e os alimentos e produtos de higiene sumirem das prateleiras; quando o tão temido caos tomar conta da vida em sociedade.
Por sorte, não cabem argumentações simplistas, alimentadas por ódios de origem religiosa, étnica, ideológica, de gênero ou coisa parecida, que possam explicar ou imputar culpas pela infecção. O coronavírus:
– não é obra de laboratório; podendo-se, assim, excluir a ação do homem ou de governos;
– atinge todas as classes sociais, sem distinção;
– não é de direita nem de esquerda e, tampouco, de extremistas de um lado e de outro; e
– não mira grupo étnico algum, menos ainda militâncias de direitos humanos, feministas, LGBTQ+, ecologistas, seitas islâmicas, terraplanistas e similares.
A grande questão é o que acontecerá quando – e já não mais se – o mundo voltar à dita normalidade. Claro, não seremos os mesmos, a começar pela confiança arranhada em nossos governantes, que, como regra, demoraram a tomar as medidas responsáveis e ainda batem cabeça sobre como preparar-se para os desafios de recuperar a economia, a política e a cultura, gravemente conturbadas pela pandemia. Uma primeira possível mudança pode dizer respeito às relações entre o Estado e os cidadãos. O monopólio da racionalidade esfumou-se. As ações individuais e espontâneas de pessoas anteciparam-se em grande medida às dos governos, em que a solidariedade humana se sobrepôs aos ditames da ordem pública. Esse povo guerreiro, que não hesitou em arriscar a vida para ajudar o próximo, deverá resistir a retornar ao mero papel de coadjuvante na condução da ordem pública, a cargo exclusivo dos gabinetes do poder.
Essa atitude se estenderá, decerto, às relações entre os países. O globalismo espera-se possa enterrar de vez a oposição à integração entre os países. Não só o surto epidemiológico desconheceu fronteiras, mas também as providências adotadas em país, revelando-se bem-sucedidas, foram rápida e acertadamente copiadas pelos demais, em benefício de milhões de vidas. Não será isso suficiente para desarmar o conflito entre o isolamento nacionalista e a solidariedade global? Tanto mais porque, no dia seguinte à sanha assassina desse novo vírus, todos terão de trabalhar juntos para, entre outros, reestruturar seus sistemas de saúde, evitar a falência de grandes e, sobretudo, pequenos empresários – estes responsáveis por grande parte do PIB dos países centrais –, reabilitar o funcionamento das companhias de transporte aéreo, compartir pesquisas científicas e oferecer ajuda (médica, alimentar e financeira) aos países mais debilitados.
O historiador da moda, o israelense Yuval Noah Harari, acaba de publicar artigo no Financial Times, em que, além de cobrar muitas das ações mencionadas no parágrafo anterior, destaca a necessidade de se reexaminarem medidas que foram ditadas pela emergência médica. A esse respeito, o exemplo a ser citado para reforçar o argumento é o uso de remédios contra a malária que se revelaram efetivos no combate ao novo coronavírus. De início, a cobertura jornalística informou que o continente africano era o que menos infecções revelara, possivelmente como resultado dos medicamentos antimalária que amplos segmentos da população costumavam tomar. Notícia mais recente, no entanto, dá conta de são passam de 900 os infectados na região. Além disso, sem orientação médica, os tais remédios podem levar o paciente à morte. É verdade que em momentos de crise, quando a inação pode matar mais do que medidas arriscadas, viva a solução médica africana. Em seu momento, porém, este seria outro motivo de urgência na tarefa de descobrir remédio efetivo, sem os referidos efeitos paralelos letais.
Harari concentra-se em alertar para o reexame de tecnologias que foram aperfeiçoadas durante a crise e resultaram muito úteis, mas que poderão representar preocupante invasão das liberdades individuais. Trata-se das câmaras de rua que monitoraram, com êxito, a movimentação dos que desrespeitavam as determinações das autoridades públicas de isolamento. Segundo Harari, nem a KGB nem as grandes multinacionais de bens de consumo ousaram dispor de equipamentos tão eficientes de vigilância, só que, superada a crise, poderão prestar-se para determinar o comportamento e as preferências da população monitorada. Não há dúvida de que foram avanços emergenciais, mas quem já ouviu falar de boas soluções sendo abandonadas, tão se desmobilizem as justificativas de exceção? É sem dúvida um sistema aterrorizante de vigilância, uma nova versão mais moderna e assustadora do Big Brother.
Não são poucos, portanto, os desafios, mesmo depois que essa praga deixar de ceifar vidas. A grande questão que se impõe é: o que queremos ser, ilhas preocupadas com nossa sobrevivência exclusiva, ou seres humanos que aprendemos a lição de que, na prática da solidariedade, do compartilhamento, da generosidade, estaremos construindo um mundo melhor?