Há a sensação de nau desgovernada; urge que os Poderes se entendam
O clássico da historiadora Barbara Tuchman “A Marcha da Insensatez” apresenta diversos episódios históricos em que governos agem como o escorpião que é carregado por um sapo na travessia de um rio.
O enfrentamento entre o Legislativo e o Executivo caminha para produzir grande número de vítimas. Estas serão os desempregados e os que sofrerão com a renda em queda que resultará da incapacidade de centralização das ações da Presidência da República e da irresponsabilidade do Congresso.
Na quarta-feira (11), o Congresso mandou uma conta para o Tesouro de R$ 20 bilhões sem apontar a fonte de receita ou aprovar medidas que reduzam o gasto em outras rubricas do Orçamento.
Vivemos uma dupla crise. Um choque externo brutal —apesar do presidente minimizar— da pandemia da Covid-19.
Por alguns meses as economias irão parar. Retomarão em seguida. Diferentemente da crise de 2008, esta não foi produzida pelo próprio funcionamento do sistema produtivo. Não deixará resíduo em um horizonte de uns dois anos se o sistema financeiro internacional prover a infraestrutura para que os contratos sejam cumpridos e os mercados consigam transpor o deserto.
Será necessária farta oferta de liquidez e a garantia de que dívidas —tanto as bancárias quanto as de mercado de capitais— sejam roladas no momento da crise.
Por aqui uma crise política crônica, devido ao pouco apreço do presidente à política, torna-se aguda com a infeliz declaração, hostil ao Congresso, do general Heleno, em 19 de fevereiro. Em seguida, na Terça-Feira de Carnaval, o presidente distribuiu para amigos convocação para uma manifestação pública contra o Congresso e o STF. O terceiro ato foi o Congresso, na quarta-feira, desfazer ¼ do que tinha feito com a reforma da Previdência.
Lembrei-me das pautas-bomba contra a presidente Dilma em 2015.
A falta de rumo elevou o juro do mercado interbancário, aquele de operações de empréstimos entre os bancos. Os papéis com vencimento em janeiro de 2022 chegaram a subir dois pontos percentuais. Note, a taxa básica de juros, a Selic, não subiu. A disfuncionalidade da política retirou do BC a capacidade de estimular a economia.
Para aqueles que defendem flexibilizar o teto dos gastos, fica a lição: quando a percepção de risco aperta, os juros sobem, independentemente do que o BC faça. A resultante de uma política fiscal mais expansionista, que desancore a política fiscal no longo prazo, é contracionista.
Retornando ao desastre de quarta-feira, além da irresponsabilidade do Congresso, houve total descoordenação do governo. A liderança do governo até a penúltima hora não encaminhara voto pela manutenção do veto presidencial.
Contribuiu também a cantilena de diversos economistas defendendo a flexibilização do teto do gasto. “Ora”, devem ter pensado os deputados, “se podemos flexibilizar, vamos desfazer parte da reforma da Previdência.”
Há a sensação de nau desgovernada. Urge que os Poderes se entendam. Que a medida de quarta seja judicializada e barrada no STF. O 5º parágrafo do artigo 195 da Constituição estabelece a inconstitucionalidade da medida.
Que haja a liberação de crédito suplementar e adequada coordenação entre a União, estados e municípios para enfrentarmos o grave problema de saúde pública que temos. Crédito suplementar para catástrofes não é restrito pelo teto dos gastos.
E, que daqui em diante, o presidente mude seu comportamento. Caso contrário, será o pato manco mais precoce de que se tem notícia.
*Samuel Pessôa, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.