Mesmo sem força para mudanças profundas, suas ações já pioraram a democracia
A estratégia protogolpista do presidente Jair Bolsonaro é perfeita, exceto pela falta de um ingrediente essencial, que são os índices elevados de popularidade. Para que a tática de jogar o povo contra os outros Poderes funcione, é preciso que o Executivo conte com o apoio decidido da maioria dos cidadãos —e isso Bolsonaro não tem.
Com efeito, líderes populistas que lograram enfraquecer as instituições incumbidas de controlá-los, como Vladimir Putin, Viktor Orbán, Recep Tayyp Erdogan e Hugo Chávez, tiveram força política para enquadrar outros Poderes e até reescrever as constituições de seus países graças a bons resultados econômicos que, durante algum tempo, entregaram a seus eleitores.
Bolsonaro não chegou nem perto disso. As pesquisas de popularidade lhe dão algo em torno dos 30% de avaliações positivas, contra 36% de negativas. E é remota a chance de ele vir a surfar numa onda de pujança econômica. Se, no final de 2019, economistas ainda viam a possibilidade de o Brasil crescer uns 2% em 2020, as perspectivas pioraram no último par de meses. Agora, com o coronavírus, já há quem fale em recessão global, um cenário que seria mais compatível com rejeição nas urnas e impeachment do que com reeleição e remodelamento constitucional.
Daí não decorre, obviamente, que não precisemos nos preocupar com o estado de nossa democracia nem resistir às investidas autoritárias do presidente. No mundo contemporâneo, as ameaças à democracia já não vêm tanto na forma de tanques, mas de perda de higidez. Ficam cada vez mais raras as rupturas formais e se tornam mais presentes arranjos híbridos, em que figuras sombrias instaladas no Executivo desequilibram o balanço institucional para abocanhar mais poder. Mesmo que Bolsonaro não tenha força para introduzir mudanças profundas no sistema, muitas de suas ações mais ordinárias já pioraram a qualidade de nossa democracia.