Num campo político em que sobrevivem grupos antivacina, a orientação baseada na ciência é avanço
Passei o carnaval com um olho no crescimento do coronavírus na Itália. Não me tomem por um velho agourento. Especialistas indicavam que o vírus tinha uma grande possibilidade de expansão no planeta. E a Itália é mais próxima do Brasil que a China.
Busquei contato com brasileiros em Milão. Muitos queriam sair, mas os voos estavam lotados. Descobriram que viajar para o exterior hoje não só aumenta o risco de contágio, mas também o de ficar preso numa quarentena.
Li sobre as primeiras oito vítimas letais na Itália. A sensação é de que a maioria já estava doente: diabete, infarto, câncer.
Até o momento, as evidências são de um baixo índice de mortalidade. Isso indica que a propagação pode matar os mais vulneráveis, como a própria gripe o faz, mas as chances de sobrevivências são altas, mesmo sem existirem ainda um antiviral específico ou vacina contra o novo coronavírus.
Isso confirma as pesquisas com 36 mil pessoas atingidas na China: 80% dos casos foram brandos. Se, de um lado, o índice mortal é baixo, o de propagação pode ser alto.
Outro fator importante é a temperatura. O novo coronavírus surgiu em lugares frios, em pleno inverno. Há indícios de que o vírus sobrevive menos tempo no calor.
O governo brasileiro faz bem em pesquisar o efeito do coronavírus nos trópicos. No entanto, se ele for pouco resistente ao calor, isso não significa que estamos todos salvos. Indica apenas que teremos um fôlego, pois ele pode reaparecer no princípio do inverno, quando, aliás, aplicamos as vacinas contra gripe.
O governo tem tomado todas as medidas aconselhadas pela OMS. O problema é que uma crise desse gênero transcende à competência do setor de saúde.
Já existem tensões, por exemplo, entre o ritmo da economia e as medidas de segurança sanitária. No norte da Itália, alguns industriais acharam um exagero o fechamento temporário de algumas fábricas.
O próprio Donald Trump condenou a imprensa, afirmando que ela se limita a dar más notícias sobre o coronavírus. Alguns dos seus seguidores dizem que se trata apenas de uma gripe, e os exageros servem para enfraquecer Trump.
Ao designar o vice-presidente dos EUA, Mike Pence, para coordenar a resposta ao coronavírus, quer parecer ter reconhecido a importância do tema.
O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, disse uma coisa importante num tipo de governo como o de Bolsonaro: vamos apostar nossas fichas na ciência.
Não creio que haja outro caminho além da coleta dos dados, análises e pesquisas científicas. Num campo político em que ainda sobrevivem grupos antivacina, a orientação baseada na ciência é um avanço.
O vírus chegou num momento difícil. O país está, de uma certa forma, dividido. A mais recente crise foi criada pelo próprio Bolsonaro, para variar.
Ele usou sua conta pessoal para divulgar manifestação a seu favor no confronto com o Congresso. Não creio que isto resulte em nada, exceto aprofundar a divisão nacional.
No artigo da semana passada, lembrei como o governo estava isolado. Sua única saída parece ser encarnar o espírito de Hugo Chávez e usar seus adeptos contra Congresso e STF.
Aliás, Congresso e STF que muitos criticamos, mas não abrimos mão de sua existência como instituições independentes.
Toda essa argumentação política parece-me simples. O difícil é constatar que o coronavírus pede uma resposta nacional e solidária.
Certamente, o debate político precisa continuar. Como encontrar nessas ásperas circunstâncias um denominador diante do coronavírus?
O vírus, como temíamos, chegou. Por mais que as pessoas se confrontem, é essencial que percebam a existência do inimigo comum.
Que tipo de acordo pode existir num país politicamente polarizado diante de uma pandemia? A esquerda é focada na distribuição de renda, ainda não chegou a considerar a distribuição de riscos. As multidões que usam transporte coletivo estarão mais vulneráveis.
Diante de novo problema, será preciso evitar o pânico e congelar o vírus da hostilidade para melhor combater o coronavírus.