Em uma época em que até Armínio Fraga se diz de esquerda, o melhor a fazer é dizer que ela morreu, para poder salvá-la
“Há duas semanas escrevi neste jornal um artigo sobre o colapso da esquerda nacional (“Como a esquerda brasileira morreu”) que foi objeto de vários comentários e críticas. Um dia após a publicação do artigo, o mesmo EL PAÍS publicou uma pesquisa que mostrava como, caso a eleição fosse hoje, Bolsonaro venceria em todos os cenários. Creio que tal coincidência seja uma boa resposta para quem procura desprezar a gravidade da situação.
De toda forma, gostaria inicialmente de agradecer grande parte das críticas que recebi. Mesmo sendo as vezes duras, muitas levantaram questões absolutamente relevantes que me levaram a considerar pontos que não havia relevado. Há outra parte de críticas que se compraz em abusar de certos estereótipos que apenas mostram mais sobre o espírito de quem fala do que sobre o objeto analisado. Não há como responder a este grupo. Gostaria pois de levar em conta algumas das críticas relevantes a fim de dar sequência a um debate que creio ser necessário prosseguir.
Primeiro, alguns creem ser sintoma de melancolia e “desabafo” falar em morte da esquerda nacional. Até mesmo ironias a respeito do fato de eu ter anteriormente insistido no esgotamento de outros processos históricos, como a Nova República e os acordos imanentes à democracia liberal foram levantados como marcas de uma fixação necrofílica. Bem, não é de hoje que se insiste haver em certos setores desse país uma espécie de déficit de negatividade, ou seja, certa dificuldade estrutural de assumir a necessidade de afirmar esgotamentos, recusas e términos (se alguém ainda está disposto a afirmar que a Nova República vive, por exemplo, eu realmente gostaria de saber onde os argumentos foram encontrados).
Lembraria que clinicamente “melancolia” é exatamente a incapacidade de se liberar da fixação a objetos perdidos, não a decisão de se recusar a carregar o que está morto. Por mais que alguns se comprazem com as máscaras da euforia, há mais melancolia neste entusiasmo do que poderia aparentar. É, na verdade, sintoma de melancolia não encarar as derrotas quando elas ocorrem, não querer ir até o fundo das derrotas a fim de compreender sua real extensão. Contra essa leitura, há de se lembrar que, em uma vida, morre-se várias vezes. Um dos piores erros é acreditar que só se morre no fim. Morre-se várias vezes e esta é, muitas vezes, a condição de realmente continuar e se transformar.
Nesse sentido, afirmar que a esquerda nacional morreu não é expressão alguma de prazer infantil de contenda. Antes, é fruto da compreensão de que a sobrevivência da esquerda nacional depende do reconhecimento de sua morte. Dizer claramente “nós morremos” é a primeira condição para nos livrarmos do que nos matou. Quem se recusa a pensar dialeticamente nessas circunstâncias desconhece a dinâmica de processos históricos. E nossa morte não foi apenas um acidente externo, ela tem causas internas. O jogo do “estamos sendo atacados por fascistas, agora não é hora de assumir nossa auto-crítica” é suicida, é o verdadeiro suicídio. Se o fascismo nacional voltou, se ele teve força para voltar, foi porque ele foi o primeiro a sentir o cheiro de nossa morte. De toda forma, em uma época em que até Armínio Fraga se diz de esquerda, o melhor a fazer é dizer que ela morreu, para poder salvá-la.
Diria ainda que há um fenômeno brasileiro aqui. Não creio ser correto colocar a conta do colapso da esquerda nacional na conquista do imaginário social pela indústria cultural, pela sociedade de consumo e suas formas de regressão. Esse diagnóstico já existia desde os anos cinquenta pelas mãos dos frankfurtianos e muita coisa ocorreu depois. Por outro lado, sendo esse fenômeno algo mundial, seria difícil explicar por que a esquerda reabre caminhos promissores no Chile, mostra-se viva no Líbano e, pasmem, começa a levantar a cabeça nos EUA.
Mas poderíamos nos perguntar se estamos realmente diante de uma morte, ao invés de uma simples derrota. Gostaria de insistir que o que ocorre agora não é simplesmente uma derrota. É o esgotamento de um ciclo hegemônico que se confunde com a história da esquerda nacional. A esquerda já conheceu várias derrotas, mas nunca conheceu um esgotamento semelhante a este. Nossas derrotas eleitorais, ou mesmo nossa derrota histórica diante do golpe de 64, não implicaram na incapacidade de projetar alternativas globais no futuro. A esquerda nacional conseguiu preservar durante décadas essa força de projeção, levando setores expressivos da sociedade a sonharem com um futuro radicalmente distinto do presente. Quando, ao contrário, nosso horizonte de expectativas foi submetido a uma retração cada vez maior (tema tratado inicialmente por Paulo Arantes), ficou claro que estávamos a entrar em algo de outra natureza. O nome desta “outra natureza” chama-se, infelizmente, “morte”.
Neste sentido, não é correto falar de precipitação, como se afinal estivéssemos jogando a toalha depois de apenas um ano de Governo Bolsonaro. Primeiro, não se trata de jogar toalha alguma, mas de saber qual o trabalho crítico necessário para não nos satisfazermos com ações desprovidas de força efetiva. Segundo, não se trata de algo ligado ao Governo Bolsonaro, mas à incapacidade da esquerda nacional reagir com uma mobilização compacta de ações, práticas de governo e conceitos que apontem efetivamente para uma sociedade globalmente distinta dessa que vemos no presente. Qual é a política econômica alternativa da esquerda nacional? Qual seu horizonte de reconstituição institucional? Nada disso é claro e nós nos recusamos a aprofundar tais debates.
É sabido que muitos se insurgem contra o uso de palavras no singular. Esses insistem que sempre houve “esquerdas”, que não faz sentido algum em falar do destino de alguma entidade quase dotada de unidade metafísica como a “esquerda”. No entanto, há um precisão necessária aqui. Ninguém negaria que a história da esquerda nacional é múltipla e internamente conflituosa. Mas isto não significa a inexistência de um modelo hegemônico que não apenas incarna-se periodicamente em múltiplos atores distintos, mas que organiza todos os outros a partir da relação a si, produzindo dois movimentos possíveis: a aproximação articulada que reforça o campo hegemônico (como um planeta que atrai corpos menores) ou o distanciamento que equivale a assunção de uma posição radicalmente minoritária. A história da esquerda brasileira realmente se confunde com os modelos de governabilidade e mobilização próprios ao populismo de esquerda. Este populismo não conseguirá mais ser reeditado porque agora temos um fascismo popular produzido pela duplicação do tipo de liderança que o lulismo representou. A tentativa de reeditar seus modelos heteróclitos de aliança não é astúcia de governabilidade. É só a expressão de que o que faremos é o que já fizemos, que nosso futuro é igual nosso passado. É possível desconfiar desse diagnóstico vendo nele apenas a milésima reedição do mantra uspiano contra o populismo. Algo que expressaria o verdadeiro DNA anti-varguista do setor paulista da intelectualidade nacional, setor no fundo impulsionado pela nostalgia da perda da hegemonia paulista na política brasileira. No entanto, seria intelectualmente mais honesto compreender esta longa luta contra o populismo como o sintoma da
consciência do sistema de paralisia que aprisiona as forças transformadoras deste país há décadas, como o sintoma do movimento de repetição histórica que nos subsume (mesmo que seja verdade que há impactos regionais distintos da mesma política, como mostra Patricia Valim, e isto precisa ser melhor pensado). Um sintoma que ganhou realidade mundial a partir do momento que várias forças de transformação no mundo assumiram para si estratégias populistas de esquerda. Eu mesmo acreditei, no passado, que elas poderiam ser localmente úteis em casos como na Grécia (Syriza) e Espanha (Podemos). Há de se reconhecer atualmente que os resultados foram decepcionantes. Ninguém precisa de uma versão hypster do PSOE ou de uma esquerda que finge fazer consultas populares para depois esquecê-las.
Isto não significa dizer que não há lutas, que as lutas atuais não são decisivas e importantes. Todos nós estamos envolvidos em várias lutas, em várias frentes, em um ritmo muitas vezes frenético. Todas elas são grandiosas. Mas a questão é outra. As múltiplas lutas não conseguem mais entrar em um processo de acumulação e unificação. Elas não entram em constelação. Conseguimos colocar um milhão de pessoas nas ruas em defesa da educação pública, mas não há sequência. Não há dia seguinte, não há acúmulo de lutas e, com isto, capacidade de bloquear as políticas destrutivas do governo. Um milhão de pessoas na rua transforma-se em uma resistência pontual. Seria o caso de se perguntar a razão para tanto.
Isso nada tem a ver com alguma contraposição entre luta de classe e lutas por reconhecimento (que alguns infelizmente insistem em chamar de “lutas identitárias”). É verdade que há os que, de forma equivocada, insistem na pretensa morte da “velha” esquerda ligada à centralidade do trabalho e da luta global contra o capitalismo. Mas temo que, em um momento histórico no qual assistimos a intensificação dos regimes de trabalho e o achatamento geral dos salários, falar que o trabalho perdeu sua centralidade e relevância só pode ser fruto de um delírio acadêmico que alguns compram como a última moda.
Se há algo que as manifestações vitoriosas no Chile mostram bem é que lutas de reconhecimento como as lutas feministas, indigenistas, anti-racistas são um desdobramento necessário e decisivo da luta de classe. Elas são figuras da luta de classe. Não há contraposição alguma aqui, a não ser no sonho macabro de alguns liberais (assumidos ou não) que querem retirar dessas lutas sua potência efetiva de transformação global. Concretamente, isto significa, por exemplo, que a derrota na luta contra a reforma da previdência é, imediatamente, uma derrota da luta anti-racista. Pois são os negros e negras um dos setores mais espoliados e precários do mundo do trabalho. São elas e eles que sentirão de maneira mais forte as consequências dessas políticas de concentração e destruição dos direitos trabalhistas. As derrotas na flexibilização dos direitos trabalhistas são derrotas da luta feminista, pois as mulheres serão as primeiras a sentir de forma violenta o significado de tal “flexibilização”. O que o Chile nos mostrou é que, por exemplo, a luta feminista demonstra sua força máxima quando ela expõe sua dimensão de luta de classe contra o modelo econômico que nos destrói.
Ou seja, o fato de que a multiplicidade das lutas no Brasil não consigam convergir em um campo comum de combate às forças que espoliam os 99% é um signo fundamental da atrofia que ocorre quando um modelo hegemônico morre. Pois isto ocorre devido ao fato da esquerda brasileira ter usado, até agora, as lutas de reconhecimento de forma compensatória. Como ela não tem nenhum horizonte concreto de transformação econômica, como ela teme dizer em alto e bom som que é anti-capitalista, como ela é a última a realmente defender a necessidade de refundação da institucionalidade política nacional, como ela não consegue criar estruturas e organizações que sejam radicalmente democráticas, como ela não consegue mais criar solidariedade genérica com aqueles que “não são como nós”, a esquerda nacional se viu obrigada a expor de forma isolada o único setor no qual ela tem capacidade de transformação, a saber, este ligado às dinâmicas sociais de reconhecimento. Assim, ela acabou por limitar a força efetiva dessas lutas.
Isso não significa estar fixado em um paradigma de ação revolucionária que seria, ao mesmo tempo, inefetivo e perigoso. De toda forma, é realmente engraçado como vivemos em uma era de sinais trocados. A extrema-direita no mundo inteiro não teme em dizer que estão a lutar por uma “revolução” que possa dar ao povo a voz que eles nunca tiveram. E, com esta revolução conservadora, eles ganham eleições que constroem adesão popular real. Só certos setores hegemônicos da esquerda acredita que isto é uma conversa de centro acadêmico ou que a verdadeira revolução é esta de novas subjetividades que estaria pretensamente a ocorrer enquanto a espoliação é cada vez mais brutal e o horizonte anti-capitalista encontra-se, em larga medida, recalcado e vergonhosamente intocado.
Por fim, seria o caso de levar em conta as acusações de que intervenções públicas desta natureza são contra producentes porque não indicam caminhos concretos a serem seguidos, por se contentarem com chamados abstratos a “rupturas”. É difícil ouvir tais colocações sem lembrar de dois fenômenos. Primeiro, essa luta contra as “ideias abstratas” era, na verdade, um tema conservador. Lembrem, por exemplo, de Edmund Burke a discursar contra as “ideias abstratas” de igualdade vindas da cabeça de filósofos ociosos que acabaram por criar caos revolucionário no mundo do final do século XVIII e começo do XIX. Ou seja, a história demonstra, e isto os conservadores sabem muito bem, que “abstrações” tem muito mais força do que alguns estão dispostos a acreditar. Seria melhor que os setores progressistas da sociedade brasileira parassem de mimetizar o anti-intelectualismo dos conservadores.
Segundo, peço licença para lembrar do que aconteceu um dia com Sigmund Freud. Diante de uma paciente histérica, que passou a história com o nome de Dora, Freud não teve ideia melhor do que dizer a ela o que ela realmente desejava, esperando que isso a levasse a suspender sua forma de destruir seu próprio desejo. O resultado não poderia ser outro que um fracasso. Dora não precisava de alguém para dizer o que fazer ou para enunciar seu próprio desejo. Ela precisava de alguém que pudesse ajudá-la a produzir um processo que lhe permitisse alcançar por si mesma a enunciação de seu desejo. Ao falar em seu nome, Freud destruiu toda possibilidade de experiência para Dora. Lembro disso apenas para insistir que não há sentido algum em enunciar “propostas” em artigos de jornal. Não é de propostas que necessitamos, mas de processo. Ou seja, de um processo aberto que permita a implicação popular na constituição coletiva de um campo de ações concretas de governo. É ele que nos falta. Nos falta suas estruturas, seu tempo, suas transversalidades.
A cada dia que passa, fica mais claro que o Brasil é um laboratório mundial para um modelo de articulação entre neoliberalismo e fascismo. O termo “fascismo” não é, aqui, uma concessão retórica. Ele é o nome de um processo em curso que paulatinamente ganha forma. Um processo dessa natureza só pode ser parado de duas formas: através de uma catástrofe (como uma guerra) ou através da consolidação de uma real força de contraposição radical. Uma força que possa contrapor à revolução conservadora uma revolução real. Mas, para tanto, essa força precisa atuar na duas frentes que sustentam o modelo, ou seja, ela precisa desmontar o necroestado que agora não tem medo de dizer seu nome nem de esconder suas técnicas reais. Necroestado que vulnerabiliza os mais vulneráveis, que elimina os que nunca foram realmente reconhecidos pela sociedade brasileira como sujeitos. Mas ela precisa também destruir o modelo econômico que o financia e necessita dele para amedrontar a sociedade enquanto garante ao sistema financeiro nacional lucros nunca dantes vistos na história deste país. Os mesmos grupos, bancos e empresas que atualmente aplaudem a política econômica em curso fingindo não ver a violência e a destruição próprias a esse Governo são aquelas que há quarenta anos atrás forneceram dinheiro para a ditadura montar aparatos de crimes contra a humanidade, tortura, desaparecimento e estupro. Ou seja, não é exato dizer que eles são indiferentes à violência estatal. Na verdade, eles sabem muito bem que necessitam de tal violência para conseguir os lucros que hoje recebem. Sem ela, a sociedade se voltará contra os interesses de sua elite rentista e seus operadores.
Mas essa força que usa a organização compacta e a imaginação política convergente para traçar um horizonte de desejos e lutas para fora do capitalismo, digamos claramente, ainda não existe. Ela só existirá se aceitarmos fazer o luto de nós mesmos, o luto do que fomos até agora.
Vladimir Safatle é professor de filosofia da USP