O caminho escolhida por Bolsonaro e seus seguidores está mais para a maneira de agir das traças
O bolsonarimo é uma ideologia baseada no combate constante às instituições políticas e políticas públicas construídas pela democracia brasileira desde 1988. O então candidato Bolsonaro e sua entourage não enganaram ninguém: xingaram na campanha a grande mídia, a “velha política”, o modelo “paternalista” de programas sociais e até mesmo propuseram uma “invasão do STF” para controlá-lo. O maior temor de todos os democratas era que esse ideário produzisse uma quebra democrática, seja no sentido clássico, com o apoio dos militares, seja reduzindo o poder das instituições ou alterando drasticamente suas regras, como nos casos recentes da Hungria e da Venezuela.
O caminho escolhido pelos bolsonaristas, aparentemente, é outro. Trata-se fundamentalmente de destruir, mais do que construir. E tal destruição está mais para a maneira de agir das traças, que comem as roupas de forma paulatina e desorganizada, por vezes traçando cotidianamente pequenas partes que ninguém percebe, por vezes puxando inesperadamente fios grandes que geram uma enorme comoção política. Não é o método de uma retroescavadeira, para lembrar o objeto do momento. É algo muito mais caótico, que traz perigos para a democracia porque corrói seu suporte, mas não diz que vai substituir o regime político, dando a impressão de que estamos em tempos de normalidade democrática.
O que explica a adoção desse método das traças vai além da adoção de valores autoritários, ou pelo menos da ausência de crenças democráticas dentro do atual grupo dominante. Essa estratégia foi escolhida porque falta a Bolsonaro um modelo de como governar o Brasil, diferentemente, por exemplo, de Putin na Rússia, cujo projeto autoritário é construído com a frieza racional do jogo de xadrez. Por vezes, o presidente até sonha com o retorno a algo mais parecido com a ditadura militar, mas, mesmo assim, ele e seus apoiadores não saberiam como reproduzir essa (terrível) experiência histórica no momento atual brasileiro e mundial.
Assim, mesmo que defenda um ideário conservador do ponto de vista cultural e proponha ambiguamente e sem muita convicção uma visão ultraliberal para a economia, o bolsonarismo não tem clareza de como isso se materializaria em termos de políticas públicas e, principalmente, de organização institucional. As evidências desse fenômeno de ausência de um projeto estruturado de governo estão no grande número de mudanças em cargos estratégicos do governo federal, nos recorrentes zigue-zagues das propostas de políticas públicas, no recorde presidencial de derrotas legislativas e na enorme concentração de poder na figura pessoal (mais do que institucional) de Bolsonaro, que só confia de fato em seus filhos e faz questão de mostrar que nenhum de seus auxiliares mais próximos está seguro em sua posição. Em poucas palavras, o presidente quer que todos o obedeçam como em uma seita, mas não sabe como organizar sua “igreja” para chegar aos fins desejados.
Essa aparente fragilidade no campo estratégico, no entanto, não reduz a força e os riscos presentes no bolsonarismo. O ponto central aqui é que embora não tenha um projeto de governo, Bolsonaro tem um projeto de poder, estruturado principalmente na destruição das instituições e políticas públicas construídas desde 1988 e na construção de “inimigos” que estariam por trás delas. No fundo, há nessa lógica uma proposta eleitoral clara: se todos os outros só erram e atrapalham o “povo”, só sobra a escolher a continuidade do atual presidente, que esconde seu desgoverno por meio da batalha contínua para destruir e desmoralizar os demais.
O jogo bolsonarista de destruição paulatina da institucionalidade e das práticas democráticas passa por cinco fronts. O primeiro é o da relação com o Congresso Nacional. É preciso mostrar que ele não é legítimo e, de tempos em tempos, criar um episódio para colocar a sociedade contra os congressistas. Como a parte majoritária do Legislativo tem aceitado aprovar medidas que evitam a ingovernabilidade do país – bem diferente do que ocorreu no segundo governo Dilma, quando Eduardo Cunha comandava o processo legislativo -, Bolsonaro tem podido, por ora, ser um revolucionário incendiário sem sofrer impeachment. É provável que após as eleições municipais esse equilíbrio político não seja mais possível.
O segundo front dessa estratégia destrutiva reside na relação com o Supremo Tribunal Federal. Novamente, após períodos de calmaria, bolsonaristas precisam inventar algum fato para desmoralizar o STF. Neste caso, a ação tem ocorrido mais nas redes sociais, porém, isso não é menos perigoso institucionalmente, porque é um processo subterrâneo e molecular de deslegitimação paulatina de vários dos ministros. A ideia de que novos indicados deveriam ser “terrivelmente” vinculados aos valores cristãos é uma forma de dizer que o atual quadro do STF não segue os padrões morais da sociedade brasileira. Há aqui o risco enorme de alimentar a ação voluntarista de algum ativista mais radical contra membros da Corte.
O método das traças foi muito usado nas últimas semanas num terceiro front, o federativo. Bolsonaro entrou neste embate com a Federação por três razões, embora continue citando falsamente o mantra “Mais Brasil, menos Brasília”. O primeiro é que é possível dividir as culpas pelos fracassos e incompetências do governo federal com os Estados e munícipios. Se a gasolina aumenta, óbvio que a culpa é dos Estados, gritaria um daqueles seguidores que ficam esperando o presidente dizer qual é a ordem do dia. Se a educação não melhora, claro que a culpa é dos municípios, e se propõe então a criação de um novo modelo de alfabetização que foi feito escondido do grande público, mas que se sabe que não será executado porque os responsáveis por sua implementação – os prefeitos, basicamente – foram completamente ignorados durante o processo. E se há problemas de segurança pública, os culpados são os governadores, mesmo quando a culpa disso esteja no fato de que o bolsonarismo esteja incitando a rebelião das Polícias Militares, com táticas que, aliás, lembram a ação das milícias.
A luta contra os governadores tem uma segunda razão de ser, de acordo com o projeto de poder bolsonarista. Ao longo da história brasileira, os Estados sempre tiveram um papel importante como contrapeso democrático frente ao governo federal. No momento, os chefes dos Executivos estaduais são capazes de apresentar discordâncias e críticas ao presidente Bolsonaro com maior legitimidade e influência do que os líderes partidários, pois representam um amplo espectro ideológico, inclusive com membros da oposição mais à esquerda.
A Federação é uma pedra no sapato de Bolsonaro, por fim, porque alguns governadores podem ser candidatos a presidente ou importantes lideranças no processo de sucessão presidencial. Dificilmente haverá harmonia entre o governo federal e os governos estaduais de São Paulo, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Bahia e Maranhão, porque seus governantes estão no caminho do projeto de reeleição bolsonarista. Claro que isso atrapalhará o país e os cidadãos desses Estados, bem como terá efeitos negativos sobre a própria gestão presidencial, uma vez que quando as políticas fracassam ao longo do território nacional, o presidente também é responsabilizado.
Mas o que importa se o governo não funciona quando está em jogo um projeto de poder maior?
Entre os cinco fronts, aquele mais visado pelo bolsonarismo, e o que dá mais prazer ao líder e liderados desse movimento, é aquele contra o PT e o lulismo. O antipetismo foi o grande eleitor em 2018 e Bolsonaro planeja que isso continue em 2022, sendo ele o portador da salvação contra essa “praga”. Para manter essa narrativa, vale até dizer, mentirosamente, que os petistas estariam mais interessados em proteger os milicianos do que a família Bolsonaro, como o séquito bolsonarista tem espalhado pelas redes sociais.
Interessante notar que manter a polarização com o PT é a melhor forma de o bolsonarismo evitar que outras forças políticas surjam contra o atual projeto de poder. Na verdade, Bolsonaro, e agora Moro, insistem na briga contra Lula porque querem mostrar que só eles podem ganhar essa batalha. Só que, tal como as traças, essa estratégia comeria não só os fios petistas, mas também outras partes do sistema que poderiam surgir como alternativa. Dessa maneira, os bolsonaristas pretendem reduzir o tamanho da pluralidade política brasileira e enfraquecer a institucionalidade democrática.
A logica da destruição bolsonarista tem seu capítulo mais triste na tentativa de desmoralizar parcelas da sociedade que se colocam contrárias às ações governamentais. Aqui, ONGs e imprensa são os principais inimigos. Para o bolsonarismo, deslegitimizar atores sociais relevantes é uma parte essencial de seu projeto de desinstitucionalizaçao do país. Mesmo que alguns cientistas políticos só olhem para a estrutura formal do Estado e digam que está tudo normal, o fato é que a democracia se enfraquece muito, e pode até morrer comida pela traças, quando a sociedade não é livre para cobrar as instituições. Eis aqui o maior perigo da estratégia de poder do presidente Bolsonaro.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP