No carnaval, essa doce e necessária ilusão, o cotidiano e suas hierarquias são temporariamente suspensos. Ao fim, na ressacada e melancólica quarta-feira de cinzas, essa suspensão aos poucos se dissipa. Nesse retorno ao real, apesar das fantasias e desfiles críticos, encontramos Jair Bolsonaro em seu movimento político mais radical e arriscado. No contexto dos motins policiais e dos conflitos com os governadores dos estados, em vídeo disparado por seu celular pessoal, Bolsonaro, em tons melodramáticos, apela ao povo brasileiro para que defenda seu governo em contraposição aos políticos de sempre, em uma manifestação a ser realizada no dia 15 de março.
Em Como as democracias morrem, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt afirmam que a morte das democracias, em vez de ocorrer a partir de golpes militares, pode ser elaborada de dentro do poder e das próprias instituições. Bolsonaro, desde a campanha e mesmo como presidente, se comporta como um outsider incapaz de se enquadrar nas normas democráticas e, por isso, tensiona ao máximo o sistema de freios e contrapesos da democracia brasileira. Nesse sentido, o chamado às ruas em contraposição aos demais poderes republicanos mostra claramente esse trabalho de decomposição institucional promovido pelo autoritarismo de Bolsonaro, que concederia poderes excepcionais a um Estado de caráter policialesco.
Contudo, e por vezes os autores o esquecem, mesmo as ações mais autoritárias necessitam da formação de um amplo consenso da sociedade civil. No vídeo, as estratégias de elaboração desse consentimento são nítidas. Bolsonaro procura uma imagem de auto sacrífico para fortalecer seu personagem ao mostrar-se como único capaz de se contrapor aos problemas da política. Com isso, o presidente ainda tenta se manter como representante dos descontentes, dialogando com aquele sentimento anti-partidário e anti-político, explícito ao menos desde 2013 e que esteve também nas bases de sua eleição.
A data de convocação da manifestação é sintomática. Março não é somente o mês do Golpe Civil-Militar de 1964, mas também da Marcha pela família, com Deus e pela liberdade, que demonstrou o apoio de setores da sociedade à intervenção militar. Nos idos de março, mais uma vez, Bolsonaro revela sua nostalgia autoritária e expõe nossos dilemas com as memórias da ditadura. Na transição para a democracia, em vez de revelado e condenado, o passado autoritário e ditatorial foi recalcado nos subterrâneos da Nova República. No momento de sua crise, esse passado retorna e permanece sem um tratamento adequado, permitindo que discursos elogiosos passem praticamente incólumes.
Portanto, nessa volta de folia, a realidade parece confusa e ameaçadora. Não se trata, todavia, de produzir alarmismos ou cravar a emergência de mais um golpe no Brasil, mas de marcar um apoio incondicional às instituições e às normas democráticas e de encontrar um caminho de valorização da política e da história que se contraponha aos labirintos da narrativa bolsonarista.
*Marcus Vinícius Furtado da Silva Oliveira é Doutor em história e cultura política pela Unesp – Franca, conselheiro da FAP e autor de “A arquitetura fractal de Antonio Gramsci: história e política nos Cadernos do Cárcere”.