Após conflitos de Bolsonaro com líderes católicos e com aval do presidente, a ministra passa a ser a interlocutora da administração com a CNBB e se reúne com bispos
Felipe Frazão, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA – Com aval do presidente Jair Bolsonaro, a ministra Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos) assumiu o papel de interlocutora do governo com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Primeira integrante da equipe bolsonarista a manter uma reunião de trabalho com a entidade da Igreja Católica, Damares tenta construir pontes e desfazer conflitos que marcam a relação do presidente com os religiosos.
“Ai da política se não fosse a Igreja”, disse a ministra ao sair do encontro com a cúpula da CNBB, na quarta-feira passada. Pastora da Igreja Batista da Lagoinha, uma denominação protestante, a ministra fez uma reverência à importância da Igreja num país de maioria católica, mesmo com o crescimento dos evangélicos, aliados preferenciais do presidente.
Há um histórico de atritos entre a CNBB e Bolsonaro que remonta à campanha eleitoral, quando o então candidato do PSL apareceu em vídeo dizendo que a entidade – comandada pela ala do clero considerada progressista, que atuou contra o regime militar – era “a parte podre da Igreja Católica”.
A pedido de Damares, a CNBB abriu suas portas em Brasília para ouvir explicações sobre projetos do governo. A ministra fez acenos de parceria em ações sociais para crianças, jovens e idosos e afirmou aos bispos que há católicos entre seus principais assessores. Saiu de lá com o texto da Campanha da Fraternidade e um convite para participar do lançamento, na próxima quarta-feira. Um compromisso na Organização das Nações Unidas (ONU) em Genebra, porém, impedirá a sua presença.
Agendada de última hora, a reunião de Damares com os religiosos não contou com o presidente da CNBB, d. Walmor Oliveira de Azevedo, arcebispo de Belo Horizonte (MG), que tinha uma viagem marcada. Participaram do encontro o primeiro-vice-presidente da CNBB e arcebispo de Porto Alegre (RS), d. Jaime Spengler, o segundo-vice e bispo de Roraima (RR), d. Mário Antônio da Silva, e o secretário-geral e bispo auxiliar do Rio, d. Joel Portella. “Estabelecemos um canal de diálogo muito positivo e, naquilo que pudermos colaborar, sobretudo na promoção de valores que nos unem, estaremos juntos”, afirmou d. Jaime Spengler.
Planalto
Na prática, a interlocução com Damares desloca o tradicional eixo de relacionamento da CNBB com o Executivo. Após a redemocratização, bispos tinham canal direto no Palácio do Planalto e costumavam ser recebidos por presidentes. No governo Dilma Rousseff, a entidade tinha assento no Conselhão, o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social.
O diálogo da ministra com a CNBB ocorreu uma semana depois de o papa Francisco receber e abençoar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas a conversa não tratou do Vaticano. Bolsonaro, também na semana passada, renovara as críticas ao pontífice por causa da exortação apostólica Querida Amazônia.
No documento, o papa afirma que conferir um status internacional não é “solução” para a crise ambiental e social da floresta, mas diz que toda a comunidade global deve colaborar. Cobra que governos locais não se vendam a interesses econômicos e políticos. Para divulgar o texto “ao mundo inteiro”, o Vaticano escreveu na rede social do papa que ele pretendia “despertar estima e solicitude pela Amazônia, que também é nossa”. Bolsonaro reagiu no dia seguinte: “A Amazônia é nossa, não é como o papa tuitou ontem, não, tá?”.
A resposta do presidente reflete sua desconfiança e também do generalato das Forças Armadas com o que é considerado por eles como desrespeito à soberania brasileira sobre a porção nacional do território amazônico.
A preocupação atravessou, no ano passado, o Sínodo dos Bispos para a Pan-Amazônia, uma assembleia eclesial para discutir problemas da região. No auge das tensões sobre o Sínodo, o Itamaraty destacou um embaixador para manifestar à Santa Sé a insatisfação do governo.
Já o presidente da CNBB demonstrou contrariedade com os planos de exploração econômica das terras indígenas propostos pelo governo. Organismos católicos, como o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT), ambos presididos por bispos, são os mais críticos a projetos de Bolsonaro. Damares, inclusive, já acusou bispos de atuação “político-partidária”.
Vaticano
A ministra construiu uma aproximação com a Igreja ao longo de 2019. Sua equipe costuma receber assessores da CNBB, como o padre Paulo Renato Campos. Em dezembro, Damares visitou o papa Francisco no Vaticano. Na ocasião, elogiou o pontífice e admitiu que a postura do líder da Igreja era a de buscar o “diálogo”, até com outras religiões. Diálogo, aliás, tem sido a palavra-chave de bispos brasileiros quando questionados sobre o governo Bolsonaro.
A interpretação corrente no clero, porém, era a de que até então o presidente não tinha interesse em conversar e mostrava predisposição ao conflito com o clero. Embora costume receber com frequência líderes evangélicos e participe de cultos nos fins de semana, Bolsonaro só recebeu uma única vez o presidente da CNBB, logo após a eleição de d. Walmor, em maio de 2019.
Outros governos
Desde a redemocratização, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) cultiva relações diretas com o Palácio do Planalto, com momentos de calmaria e tensão. Anualmente, a Igreja publica análises de conjuntura, mas também costuma se pronunciar, por meio dos bispos que ocupam a presidência e a secretaria-geral, a respeito de projetos e políticas sociais e econômicas dos governos. Veja abaixo alguns dos embates entre a CNBB e ex-presidentes:
Collor
Os bispos foram contra as políticas econômicas neoliberais do governo Fernando Collor de Mello desde o início da administração, como os acordos com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e apontavam para a informalidade no mercado de trabalho interno. Em 1992, no processo de impeachment que culminaria na renúncia de Collor, a CNBB apoiou demais entidades civis que lideraram manifestações pela saída do então presidente. No Congresso Nacional, o então presidente da CNBB, d. Luciano Mendes de Almeida, falou que o povo estava atônito com abusos, corporativismo, desvio de verbas, clientelismo e fisiologismo.
FHC
Em 1997, a CNBB foi contra a política de privatizações do governo tucano, especialmente, contra a venda da Vale do Rio Doce. Fernando Henrique Cardoso reagiu dizendo que privatização da Vale não era matéria para os bispos opinarem. A CNBB deu apoio ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em atos pela reforma agrária. Órgãos da CNBB também acusaram o governo FHC de comprar apoio para aprovar a emenda da reeleição. A CNBB chegou a dizer que o tucano perdeu a credibilidade junto a sociedade.
Lula
Em 2006, após o escândalo do mensalão, a CNBB passou a cobrar que o governo Luiz Inácio Lula da Silva não convivesse com a corrupção e, num ano eleitoral, criticou alianças partidárias do presidente, embora tenha se oposto a um impeachment. Lula diria, em 2009, que Jesus faria aliança com Judas para aprovar projetos no Congresso, o que ofendeu o episcopado. Outro atrito era a política econômica de Lula. Os bispos cobravam que ele não privilegiasse o capital. A CNBB também se posicionou contra o avanço de pesquisas sobre células tronco, incentivadas durante o governo do petista, e reclamou da distribuição de preservativos e outros métodos contraceptivos, como pílulas do dia seguinte e DIU (dispositivo intra-uterino).
Dilma
O aborto seria a marca da relação de Dilma Rousseff com os bispos com debates de cunho moral presentes nas campanhas eleitorais de 2010 e 2014, vencidas pela petista. Em 2012, durante o primeiro mandato, a CNBB se manifestou contra a escolha de uma ministra pela presidente. Dilma decidira nomear como ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres a professora universitária e pesquisadora da temática Eleonora Menicucci, defensora da descriminalização do aborto.
Temer
A CNBB manifestou ressalvas ao afastamento de Dilma, em maio de 2016, que levaria Michel Temer ao Planalto. Em 2017, a CNBB se opôs frontalmente à reforma da previdência e pediu mobilização dos cristãos contra a proposta elaborada pelo governo Michel Temer, que ficaria parada no Congresso Nacional por causa das investigações criminais e da delação da JBS contra o emedebista. Diante de denúncias de corrupção, o porta-voz da CNBB, secretário-geral d. Leonardo Steiner disse que Temer não tinha “condições éticas” de seguir no cargo.
‘Divergência do bolsonarismo com Igreja é barulho de rede social’, diz Damares
Ministra afirma que pretende estabelecer mais cooperação entre cúpula católica e o governo
Felipe Frazão, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA – A ministra Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos), que assumiu o papel de interlocutora do governo com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e o governo, disse ao Estado que acredita que a relação está boa e promete mais cooperação de pautas e políticas públicas: “Em alguns momentos, em alguns lugares, a Igreja chega o Estado não chega”.
A senhora visitou a CNBB em nome do presidente Bolsonaro, com a ciência dele, representando o governo?
A visita se deu com conhecimento do presidente. Ele sabia da visita e da agenda. Não representei o governo como um todo, mas apenas o ministério. Nossas pautas foram muito pontuais.
A senhora é capaz de melhorar a relação do governo com a CNBB, após episódios como a divergência sobre o Sínodo da Amazônia e críticas frequentes do presidente e seus apoiadores ao Papa Francisco?
Eu me coloco à disposição para ser ponte, se necessário for. Mas acho que essa relação está boa. Não vejo esses ruídos todos. Acho que é mais barulho nas redes sociais do que de verdade a relação entre CNBB e Estado.
É um dos objetivos do governo reatar com a CNBB em 2020?
Isso nunca foi conversado, mas não vejo essa questão de não reatar ou rompimento. Esse rompimento nunca houve. A primeira visita que o atual presidente da CNBB (d. Walmor Oliveira de Azevedo) fez, assim que tomou posse, foi ao presidente da República. A CNBB tem inúmeras atividades ligadas a diversos ministérios. Quando a gente pensa no CIMI (Conselho Indigenista Missionário), a gente associa à Funai (Fundação Nacional do Índio) e política indigenista. Quando a gente pensa em Pastoral da Criança, a gente já associada aos ministérios da Saúde, da Cidadania e ao nosso próprio ministério.
Pesa o fato de ser uma pastora conhecedora dos valores cristãos?
Eu não fui como pastora, fui como ministra e como sou militante em defesa da vida e da família e há muitos anos trabalhando com idosos, com criança… Todas as pastorais ligadas à CNBB de uma forma ou de outra uma vez na vida eu já participei. E essas pastorais todas têm uma relação muito grande entre os temas que elas lidam e os do ministério. Era apenas para apresentar à CNBB a formatação do ministério que estamos fazendo. Era uma visita que deveria ter acontecido ano passado.
Pode haver mais cooperação e parcerias do governo Bolsonaro com a Igreja Católica?
Com certeza, muita parceria entre governo e Igreja. Foi uma das coisas que nós falamos lá (na visita). A Igreja tem a Pastoral da Juventude que faz um trabalho espetacular e nós estamos construindo uma política nova para a juventude no Brasil. Dá para fazer muita coisa junto. A Igreja Católica cuida com muito carinho de alguns segmentos, como as famílias no cárcere – presidiários, mulheres, até mesmo as unidades socioeducativas, a população carcerária. A Igreja como um todo tem um trabalho social extraordinário, incrível. Em alguns momentos, em alguns lugares, a Igreja chega aonde o Estado não chega.