Na semana anterior ao Carnaval, que em outros tempos sempre foi uma contagem regressiva para a folia, o país voltou algumas casas no jogo democrático
Quando escrevi, na coluna passada, sobre a pesquisa que a socióloga Esther Solano vem fazendo sobre o bolsonarismo, a democracia brasileira estava um pouco mais forte. Analisei como Solano, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da Universidade Complutense de Madri, havia identificado, a partir de entrevistas com bolsonaristas moderados de classes C e D, os atributos antissistêmico, antipartidário/antipetista, anti-intelectual, religioso e militar que motivaram o voto desse segmento em 2018. Decidi voltar ao tema na coluna desta semana por três razões.
Primeiro, percebi que, por falha minha, houve incompreensão de alguns leitores sobre o que é esse tipo de pesquisa, usada não só nas ciências sociais, mas também no marketing, na produção cultural e em diversos outros campos.
Voltei a ele também porque, ao ler os comentários de leitores da coluna no Instagram sobre um vídeo que mostra livros da biblioteca do Planalto empilhados no chão, percebi que ali estavam outros testemunhos ainda mais reveladores do bolsonarista como ele é. Mas, sobretudo, voltei ao tema porque concordo com o que meu colega Helio Gurovitz escreveu algumas edições atrás em ÉPOCA: a imprensa tem o desafio de buscar entender por que, apesar de tudo, cerca de um terço do país segue apoiando Bolsonaro. E o “tudo” só fez aumentar nos últimos dias.
Nesta quinta-feira 20, dia do fechamento desta edição de ÉPOCA, torço para que chegue logo a hora do desbunde, e que samba, frevo e pagode engulam a radicalização política que ganhou ainda mais ritmo desde a terça-feira 18.
Naquele dia, Jair Bolsonaro acordou ofendendo a jornalista Patrícia Campos Mello de maneira misógina e covarde, em mais um stand-up comedy de agressividade na porta do Palácio da Alvorada. Horas mais tarde, graças a um descuido numa transmissão ao vivo via Facebook da cerimônia de hasteamento da bandeira no Planalto, o ministro Augusto Heleno, um ex-fardado que tem trabalhado para escalar o ódio no país, foi flagrado aconselhando Bolsonaro a convocar o “povo” contra o Congresso, a que acusou de chantagear o governo.
Na quarta-feira 19 as bordoadas continuaram. Soube-se que, imiscuindo-se no jogo político, Sergio Moro tirou da gaveta a autoritária e anacrônica Lei de Segurança Nacional, criada na ditadura para perseguir opositores, e a empregou em “plena democracia” contra um de seus mais ferrenhos… opositores. No mesmo dia, como em Macondo, o senador Cid Gomes (PDT) peitou policiais amotinados em Sobral, Ceará, subiu numa retroescavadeira e, ao tentar invadir o batalhão local da Polícia Militar, foi baleado com dois tiros. Ciro Gomes dirigiu-se a Eduardo Bolsonaro no Twitter para afirmar que a ação de seu irmão Cid era contra a tentativa de milícias controlarem o Ceará, como, segundo Ciro, “os canalhas” da família Bolsonaro teriam feito com o Rio de Janeiro.
O barata-voa da esquerda merece uma análise mais detida, que ficará mais para a frente. Voltemos aos bolsonaristas e ao porquê de, apesar de tudo, apesar de uma semana como esta, o apoio ainda subsistir. Para isso, selecionei alguns comentários feitos por leitores claramente defensores do presidente sobre o vídeo, publicado no domingo 16 no site de ÉPOCA, que mostra livros da Biblioteca da Presidência da República empilhados sem nenhum cuidado num corredor, para dar lugar à obra que abrigará a sala da primeira-dama Michelle Bolsonaro. Como a colunista Bela Megale, de O Globo, mostrara dias antes, o Planalto decidira diminuir a centenária biblioteca, criada no governo de Wenceslau Braz (1914-1918) e especializada em ciências sociais, Direito, economia e administração. Provavelmente, muitos dos livros mostrados no vídeo eram, portanto, edições de décadas ou séculos.
Cerca de 700 comentários pipocaram no Instagram da coluna ao publicarmos as imagens. Além do contumaz repositório de ira, eles formaram um retrato fidedigno do bolsonarismo em sua essência. Curiosamente, apareceram ali o anti-intelectualismo, o antipartidarismo/antipetismo, a negação do sistema, a influência religiosa e a militar.
O anti-intelectualismo saltou aos olhos. “Parabéns! A primeira-dama Michelle merece, tem feito nos dias de hoje muito mais para o Brasil do que esses livros”, defendeu um leitor. “Esses livros já estão empoeirados há muito tempo. Primeiro, no governo petista ninguém lia, (…) porque não sabem ler”, disse outro. Um terceiro foi mais duro: “Tem é de botar fogo nisso. Livros velhos só servem para juntar pó”.
Solano defende em sua pesquisa que professores e intelectuais são intermediadores da transmissão do conhecimento e, como todo intermediador, colocado em xeque pelo bolsonarismo. Também é assim com o político profissional e com o jornalista. “Por que devo aceitar uma política conduzida por políticos profissionais? Por que devo aceitar verdades científicas e acadêmicas validadas por intelectuais? É a negação daqueles que tradicionalmente atuaram como mediadores entre os indivíduos, o conhecimento e a participação política”, escreveu a socióloga em “Elementos do bolsonarismo”, artigo ainda não publicado e que resume uma parte da pesquisa, feita em fevereiro e março de 2019.
Naqueles dois meses, Solano fez 24 entrevistas em profundidade — uma técnica de pesquisa qualitativa que busca, a partir de uma interação presencial de horas com o entrevistado, entender aspectos de um assunto que os números são incapazes de mostrar. Foram escolhidos brasileiros C e D com um mesmo perfil. “Escolhemos o que chamamos de bolsonaristas moderados, que votaram em Bolsonaro, mas não são os mais radicalizados. É aquela pessoa que não tem uma adesão total e já demonstra certo arrependimento”, explicou Solano.
A rotulação da academia e do intelectualismo como de esquerda ou petista também aparece nos comentários, como mostra essa sequência, de três leitores diferentes: “Já que o pessoal que vota em Lula é intelectual, esses livros devem ensinar somente uma coisa, a roubar”; “Os livros de valor o Lula já roubou todos”; “Livros que o Lula fingia ler”.
Outros comentários nas redes da coluna trazem também exemplos da influência religiosa e militar na concepção de mundo do bolsonarista, o que também é abordado na pesquisa de Solano. Estaria em curso uma cruzada moral, com os valores familiares cristãos em xeque. A sociedade viveria uma crise de valores causada por não ter a religião como bússola. “Mil vezes um evangélico batendo em minha porta do que um bandido protegido pelo PSOL pulando meu muro”, escreveu um leitor, desta vez no Facebook, ao comentar uma notícia sobre parlamentares evangélicos. “Antes uma bancada da Bíblia que uma bancada comunista”, afirmou outro na mesma seção de comentários. Já os fardados, com autoridade e disciplina, seriam capazes de impor respeito. “Com a graça de Deus. Coloca o Exército nas ruas, vai ficar bom demais”, defendeu uma leitora, numa nota sobre o crescimento do número de militares na Esplanada. “Verde-oliva na área. Qualquer reclamação, falar com os generais”, comemorou outro.
Comentários assim e pesquisas como a de Solano mostram quais são algumas das razões, portanto, que motivam quem segue apoiando Bolsonaro. Gestos como o do presidente, atacando uma jornalista; de Moro, usando uma lei da ditadura para intimidar um opositor; ou de Heleno, incitando o presidente contra o Congresso de políticos profissionais que “chantageiam”, atendem a anseios de parte da população. É o que o cientista político alemão Yascha Mounk aborda no ótimo O povo contra a democracia.
Ainda que outras entrevistas em profundidade feitas por Solano, em setembro do ano passado, tenham apontado decepção desses bolsonaristas moderados, pesquisas quantitativas seguem mostrando o apoio de um terço dos eleitores, sem variações expressivas, para cima ou para baixo. Enquanto isso, Bolsonaro continua dobrando a aposta, cada vez mais ministros vão se radicalizando e nossa democracia vai aos poucos engasgando. Que os dias de Momo nos ajudem a recobrar o fôlego.