O ministro, porém, não é vítima. É agente
Fato: Paulo Guedes está irritado. Constatação: irrita-se com frequência crescente. Sugestão: que se atente à periodicidade dessas erupções. Tese: a irritação, que o ministro expressa em falas desastrosas, corresponde a picos de descontentamento com o governo que integra; suas declarações como transbordamentos de quando o fervo não se pode conter intramuros.
Algo não flui naquele rio; talvez em decorrência do encontro das águas do liberalismo econômico com as do reacionarismo. Numa mistura em que o liberal — porque convicto de prestar um serviço maior ao país — aceita relativizar valores democráticos e supõe ser possível prescindir, ainda que momentaneamente, do liberalismo político, o esgoto sempre se impõe, escraviza e descarta. As declarações de Guedes seriam o alarme de quando a geosmina rompe — vence — o tratamento.
O ministro, porém, não é vítima. É agente. Ninguém pode aceitar que um homem experiente desconhecesse o Guandu em que aceitou nadar. Todo mundo, pois, deve se perguntar: como explicar o descarrilamento entre a propaganda de crescimento otimista para 2020 e doravante, a afirmação constante de que a economia vai bem, e os piques de mau humor de Guedes?
Há um padrão para seus arroubos de franqueza: as piores manifestações do ministro ocorrem sempre que a sua agenda de reformas é travada — deliberadamente prejudicada — pelo presidente da República. É possível também identificar o tema que mais dá concretude a esse desalinho. As três últimas vezes em que explodiu derivaram de Jair Bolsonaro boicotar a reforma administrativa.
A primeira da série remonta à virada de novembro para dezembro de 2019. Aquela fala autoritária sobre AI-5 coincidiu com o presidente trair compromisso firmado. O texto estava pronto. Avalizado pelo ministro. Havia um acordo com o Parlamento para seu encaminhamento. Tudo costurado, fiado na palavra de Guedes. Mas Bolsonaro mandou parar; falou em ajustes. Armou uma crise, instrumentalizou auxiliares, sempre Onyx Lorenzoni, para desautorizar o Posto Ipiranga e brecar o avanço do projeto — e o fez com aquela desculpa de o seu tramitar ser gatilho para a deflagração de revolta popular como a havida no Chile.
Guedes sabia se tratar de balela, não desconhecia a natureza do chefe, líder sindical cuja carreira se constituíra por meio da defesa dos interesses corporativos de servidores públicos; mas não deixou de estourar se valendo da linguagem bolsonarista, a de um pretenso clima de desordem que pudesse desaguar em atos de exceção como resposta. O andamento da reforma, portanto, ficaria para 2020. Aquela desculpa lhe servia.
Há mesmo quem creia que a radicalização do discurso de Guedes — a surfada na onda do AI-5, por exemplo — tenha método; que o ministro, assim, buscaria se aproximar da ala ideológica do governo para ganhar algum fôlego. Talvez. Mas isso somente se intuísse — ao menos intuísse — o destino que os reacionários reservam aos liberais. Intuirá? Há, por outro lado, quem veja o ministro mais à vontade entre os primeiros.
O ano novo chegou. Bolsonaro deixou que circulasse a notícia de que o texto seria remetido ao Congresso na segunda semana de fevereiro, Guedes teve de se engajar nessa promessa; mas logo se soube que era falsa, conforme exprimia a mensagem presidencial ao Legislativo, na qual a reforma administrativa, que fora — para o Ministério da Economia — a mais importante depois de aprovada a da Previdência, nem sequer constava entre as prioridades.
O ministro ficara novamente exposto. Veio, então, a disparada de irritação materializada na fala sobre “parasitas”, com a qual, de resto, atacando o funcionalismo público, subsidiaria a campanha dos que militavam contra seus planos, os que entraram na cabeça de Bolsonaro para lhe fornecer nova desculpa: como mexer agora com aquela categoria?
Com a reforma administrativa adiada e esvaziada, a ser enviada ao Parlamento (se for) decerto muito enfraquecida, não tardaria até que o ministro — ademais tendo de lidar com a perda de Rogério Marinho, sua Casa Civil informal — explodisse de novo, pouquíssimo depois, dessa vez para propor a reflexão sobre real desvalorizado e o fim da festa de empregadas domésticas na Disney.
Outra tese: a irritação de Guedes também como mostra de uma noção particular de tempo; de tempo curto. De quem tem pressa, tanto mais em ciclo eleitoral. De alguém que sabe, conhecendo a pouca convicção do presidente, que precisa entregar logo; que tem consciência de que é a projeção — a esperança —de crescimento, de geração de empregos, o que o mantém protegido. Até quando?
O estrilar de Guedes, afinal, é o apito — o instinto de sobrevivência — que nos informa sobre a impossibilidade de se reformar estruturalmente o Estado sobre um solo de instabilidade, tanto mais se a imprevisibilidade é forjada por aquele que lhe garante o emprego.
Bolsonaro é o limite. O ministro não se poderá dizer surpreendido.