Guilherme Amado: Brasil, país do passado

O currículo de contribuições para que o país do futuro passasse a ser visto como um palco do retrocesso é longo. Tudo isso não passa despercebido de quem observa o país.
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

O currículo de contribuições para que o país do futuro passasse a ser visto como um palco do retrocesso é longo. Tudo isso não passa despercebido de quem observa o país

Daqui a algumas décadas, quando os livros (com muito texto, de preferência) tiverem a missão de discorrer sobre os anos Bolsonaro e os prejuízos por eles causados à imagem do Brasil no exterior, poucas cenas vão resumir tanto o período quanto a da quarta-feira 8, quando Bolsonaro ligou a câmera, postou-se de costas para ela e se deixou filmar para seus milhões de seguidores nas redes sociais. Em silêncio, assistiu por 8 minutos e 50 segundos ao pronunciamento de Donald Trump sobre os ataques do Irã, na véspera, a bases americanas no Iraque. Nada simbolizou mais até agora a vassalagem brasileira em relação aos Estados Unidos, uma postura que tem chocado gerações de diplomatas, de diferentes matizes ideológicos, não só por ir contra tudo que pregam as diretrizes da diplomacia mundial, mas também por trazer dividendos que o país conseguiria da mesma maneira. A mansidão para o lado de Trump seria só mais um traço da caricatura de um homem que se regozija de falar grosso para baixo e fino para o alto, se não viesse acompanhada por decisões e episódios que têm manchado uma reputação conquistada pelo Brasil — de alegria, esperança e boas perspectivas para o futuro —, fosse quem fosse o ocupante do terceiro andar do Planalto.

O currículo de contribuições para que o país do futuro passasse a ser visto como um palco do retrocesso é longo: a leniência diante do aumento das queimadas na Amazônia, a verborragia contra os direitos humanos de qualquer humano que não o apoie, a ideologização das relações bilaterais com países historicamente amigos, como a Argentina e a França, a mudança de posições antigas do Brasil de respeito à identidade de gênero, a ameaça de mudar a embaixada de Israel, gerando uma crise com países árabes, a obsessão olavista de que o Brasil esteve à beira de um regime comunista, a crise com o Irã por apoiar o assassinato americano ao general Qassem Soleimani. Tudo isso, ora gerando irritação, ora só deboches, não passa despercebido de quem observa o país.

Em outubro, o britânico Financial Times, principal jornal de economia do mundo, lido pelos grandes investidores internacionais, afirmou em uma reportagem que o vídeo gravado de madrugada pelo presidente, diretamente do Qatar, após o depoimento do porteiro do Vivendas da Barra ser noticiado pela TV Globo, “levanta questões sobre o estado mental de Bolsonaro”. “O Brasil tem se esforçado para aprovar a agenda de reformas, mas as frequentes explosões de Bolsonaro — que lhe deram o apelido de Trump Tropical — estão afastando apoios necessários para aprová-las”, afirmava o texto. O jornalão, de linha editorial conservadora, não está sozinho.

A coluna teve acesso a dezenas de telegramas diplomáticos enviados por postos na Europa ao longo de 2019, em que são feitas para Brasília análises do que está sendo publicado na mídia estrangeira sobre o Brasil. A deterioração da imagem nacional no exterior ganhou velocidade depois da crise na Amazônia. Um dos despachos, por exemplo, enviado da embaixada de Berlim, aponta um balanço trágico na imprensa alemã sobre o país.

Essa proporção seguiu, com algumas variações, ao longo do segundo semestre. No exterior, os avanços da política econômica são apagados por todo o resto, e nem o que sempre fez o Brasil brilhar tem surtido efeito. Em outubro, quando Sebastião Salgado recebeu o Prêmio da Paz do Comércio Livreiro Alemão, o prestígio do fotógrafo gerou algumas notícias positivas. Mas, dias depois, a bonança se mostrou passageira quando Salgado disparou críticas contra Bolsonaro. “Criticou que o presidente Jair Bolsonaro se referisse ao potencial econômico da Amazônia supostamente sem respeito pelas terras indígenas e sugeriu que os europeus estipulassem condições para a instituição do Acordo Mercosul-UE”, escreveu um diplomata lotado em Berlim.

A chegada de Ernesto Araújo ao comando do Itamaraty fez com que alguns dos mais experientes da carreira se afastassem ou fossem afastados de funções estratégicas. Os três ex-chanceleres brasileiros ainda no Itamaraty estão totalmente alijados. Antonio Patriota é o titular no Qatar. Luiz Alberto Figueiredo é o embaixador em Doha. O tratamento mais controverso tem sido dispensado a Mauro Vieira, que foi ministro no governo Dilma Rousseff e embaixador nos Estados Unidos, na Argentina e na ONU, assumirá nos próximos dias a inexpressiva embaixada de Zagreb, na Croácia. No Itamaraty, o comportamento de Araújo com Vieira tem sido considerado uma demonstração de ingratidão. Foi Vieira quem levou o atual chanceler para, em 2010, ser seu número dois em Washington, o maior posto da carreira de Araújo até ser alçado a número um do Itamaraty, menos pelo currículo e mais por seus predicados olavistas. O atual ministro também foi subchefe de gabinete de Mauro Vieira, quando foi ministro de Dilma.

Essa geração tem assistido ao desmonte de pilares que sempre distinguiram o Brasil, desde o Barão do Rio Branco, a exemplo do princípio de não intervenção em outras nações. Está na Constituição — Artigo 4º — que o Brasil “rege-se em suas relações internacionais” pela “não intervenção” na política interna de outros países. Não que se espere de Bolsonaro que ele conheça a Constituição — o jurista Conrado Hübner Mendes já conta pelo menos 17 episódios em que, em sua visão, Bolsonaro já cometeu crimes de responsabilidade (atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal). O comportamento do presidente nas relações internacionais pode configurar mais um. Bolsonaro vai contra a Constituição e assume sem constrangimento posições sobre política interna de outros países, a exemplo do que fez na eleição argentina, defendendo o voto em Mauricio Macri, e não em Alberto Fernández, ou ainda sobre a eleição americana deste ano, quando já afirmou até haver apoio divino a Trump. “Trump vai ser reeleito, alguém tem dúvida disso? Vai ser reeleito. Está o país indo muito bem, muito bem. Desemprego lá embaixo, a economia bombando, (ele) exercendo seu poder de persuasão no mundo todo, graças a Deus tem os Estados Unidos, que está fazendo tudo isso. Deus está no controle”, afirmou Bolsonaro, para quem talvez Deus e Trump sejam um só corpo.

Ernesto Araújo não está nem aí para os danos à imagem brasileira. A exemplo da Secretaria de Comunicação do Planalto, que até cancelou o contrato de clipping internacional, que era responsável por coletar e analisar tudo que sai sobre o Brasil na imprensa estrangeira, o Itamaraty também não tem nenhuma estratégia para conter o pessimismo que se tem hoje com o país. Esse papel, atualmente, tem cabido exclusivamente a Tereza Cristina. A ministra da Agricultura embarca neste mês para a Semana Verde, na Alemanha, com o objetivo de tentar mostrar que a sustentabilidade é de interesse do agronegócio. Ricardo Salles, a quem caberia o papel de defender o meio ambiente, não é ouvido. Na cúpula do Ministério da Agricultura, sabe-se que, hoje, ou ela faz isso, ou ninguém de peso no governo defenderá lá fora que, além de ser tech e pop, o Agro não mata a floresta.

“Bolsonaro tem de pensar no Brasil, nos interesses do Brasil, e não na visão pessoal dele sobre os fatos. Pouco importa se o presidente pensa A ou B, o importante são os interesses nacionais. E esses estão sendo sacrificados pela postura do presidente. Cada vez menos o Brasil é ouvido”, lamentou um ex-chanceler que deixou recentemente o posto. Ele está preocupado com os próximos anos: “Tudo isso foi no primeiro ano. E ainda faltam três. Não consigo imaginar quantos prejuízos mais teremos até 2022”.

Privacy Preference Center