Corrosão democrática se dá não só entre os três poderes; importam fronteiras entre religião e Estado, civis e militares
Já há muitos anos que se debate no Brasil sobre a qualidade do funcionamento de nossas instituições: se funcionam bem, se funcionam mal, ou se simplesmente funcionam. Por óbvio que pareça, nunca é demais lembrar que “funcionar” significa cumprir alguma função. Portanto, a dúvida sobre a operação das instituições diz respeito a quão capazes são elas de resolver os problemas para os quais foram criadas.
A renitente insatisfação, expressa nos infindáveis clamores por alguma reforma política, provém de uma série de fatores: a percepção negativa de nossa estrutura institucional e de seus atores pela população, os seguidos escândalos de corrupção, o custo proibitivo (ou mesmo obsceno) de campanhas eleitorais, a baixa representatividade de um sistema em que eleitores sequer se lembram daqueles nos quais votaram, os muitos abusos cometidos por diferentes agentes do Estado, a ineficiência e a ineficácia do setor público, os privilégios de corporações estatais, a politização da Justiça, a insegurança jurídica Enfim, a lista é longa.
Se tivermos como métrica o bom funcionamento absoluto, nunca estaremos satisfeitos – nem aqui, nem alhures. Não à toa, em trabalho já antigo, o filósofo político e jurista, Norberto Bobbio, dizia que a democracia tinha diversas promessas não cumpridas – e segue tendo. Mas podemos nos perguntar se, mesmo não funcionando de forma ideal, as instituições democráticas dão conta minimamente dos problemas que devem resolver ou evitar – como a própria destruição da democracia.
A pergunta segue pertinente no Brasil atual diante dos temores do autoritarismo bolsonarista, por um lado, e da crença de que as estruturas organizacionais do Estado brasileiro, bem como os atores políticos, dão conta de conter os ímpetos mais perigosos do atual governo. Numa leitura mais otimista, como a de meu colega da FGV Ebape, Carlos Pereira, a democracia brasileira não ruiu e provavelmente não ruirá, pois atores judiciais e políticos têm operado eficazmente para conter ou mesmo reverter excessos do governo, corrigindo seus rumos. Congresso e Judiciário têm tomado decisões concretas nessa direção, impondo derrotas ao Executivo, moderando políticas e resguardando direitos.
Analistas mais pessimistas, como Celso Rocha de Barros, apontam a vocação autoritária do governo e suas medidas concretas de desmonte de instituições e perseguição a atores relevantes no âmbito de suas atribuições. Se considerarmos a forma como se destrói o aparato fiscalizador na área ambiental, o aparelhamento ideológico e a censura que ocorrem na cultura, a diluição da fronteira entre o Estado laico e certas denominações religiosas, ou mesmo o estímulo da retórica presidencial a ações violentas na cidade e no campo, temos razões para nos preocupar. Nessas frentes, o funcionamento dos freios e contrapesos da democracia tem sido menos efetivo e a lenta e gradual erosão do ambiente democrático ocorre, dia após dia.
Já que há uma metáfora física na ideia clássica dos freios e contrapesos, levemo-la um passo adiante. Mecanismos desse tipo são sujeitos a tensões, desgaste e têm limite para sua resistência. Assim como o não uso tende a deteriorar um mecanismo, o uso abusivo pode causar seu colapso. O estilo de governo do bolsonarismo exige uma operação severa dos dispositivos institucionais, que operam sob tensão constante, precisando limitar, corrigir ou frear as iniciativas governamentais incessantemente. Os freios de um veículo existem para pará-lo ou controlar sua condução, mas quem desce a serra com o pé no breque corre o risco de não conseguir frear justamente quando chegar à planície.
O governo mediante confronto contínuo força os demais atores a operar quase que todo o tempo na contenção, aumentando o desgaste e desperdiçando energias que poderiam ser mobilizadas de forma mais construtiva. O Congresso derruba vetos presidenciais como nunca, deixa caducar Medidas Provisórias de forma inaudita, reverte decretos presidenciais em montante inédito – sobretudo para um primeiro ano de governo. O Judiciário, em particular o STF, é mobilizado para por freio a seguidas iniciativas do governo que violam direitos ou desrespeitam preceitos legais. Se existe a máxima jornalística de que quando um cão morde um homem não há notícia, mas quando o inverso ocorre há, vivemos num país em que todos os dias a imprensa, atacada pelo presidente, noticia mordidas governamentais em cachorros e humanos.
E, nesse sentido, o tempo interessa, pois relações humanas são sensíveis a ele. O modus operandi belicoso do governo produz mais desgaste quanto mais o tempo passa. Resistir um ano é possível; será possível seguir mais três no mesmo ritmo? Qual o limite da paciência dos demais atores? Qual o limite da paciência do governo com as contenções que lhe são impostas? E, para além dos enfrentamentos com os outros poderes do Estado, há também aspectos preocupantes na partidarização das forças de segurança. Em matéria desta semana na Supercoluna de O Estado de S. Paulo, Marcelo Godoy aponta que o “Bolsonarismo invade os quartéis da PM”.
Ou seja, além da fronteira borrada entre governo e religião, o bolsonarismo também tem produzido o transbordamento da disputa política para dentro dos batalhões. Em evento de outubro, na PM paulista, familiares de sargentos que se formavam vaiaram o governador e receberam o presidente aos gritos de “mito”. Em discurso nesse mesmo evento, Bolsonaro associou a atuação da PM ao combate à esquerda, arrancando aplausos do público. Note-se que não se trata apenas das Forças Armadas, mas das polícias militares nos estados, mais capilarizadas, atuantes e acostumadas a lidar cotidianamente com a violência. Que instituições operam para conter esse processo em curso, de partidarização dos agentes armados do Estado? Há mecanismos institucionais capazes de fazer isso? Difícil de ver.
O tempo dirá se temos mais razão para sermos otimistas ou pessimistas. Neste momento, o que se vislumbra nesta seara são sinais bastante ambíguos.
*Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP