‘Democracia em Vertigem’ analisa a polarização no País, sem esconder que tem um lado
Democracia em vertigem de Petra Costa foi ontem indicado ao Oscar de melhor documentário. Petra é a 1.ª diretora brasileira indicada à premiação. Se vencer em 9 de fevereiro será a 1.ª vez que o Oscar será recebido por um brasileiro. Mas desta vez haverá muita torcida contra.
Tom Jobim famosamente afirmou que no Brasil sucesso é ofensa pessoal, mas a grita contra Democracia em vertigem é de outro tipo. E é também natural: o filme se propõe a analisar a polarização no País a partir de 2013, sem esconder que tem um lado. No Twitter, a conta oficial do PSDB já ironizou o feito do filme, parabenizando Petra pela indicação na categoria “melhor ficção e fantasia”. O proeminente crítico Kenneth Turan, do Los Angeles Times, já concebera que o filme é “mais um ensaio do que um documentário clássico” (o que não impediu de tecer elogio à obra).
Esse é um filme sobre a crise política, mas é também sobre a nossa crise econômica: e essa coluna é sobre o confuso olhar de Petra na economia. Assim, não vamos discutir outras controvérsias já debatidas nos últimos meses (elas incluem dúvidas sobre o passado clandestino de seus pais; alterações deliberadas das imagens usadas; e a total omissão quanto a tentativa de assassinato do líder da corrida eleitoral, estranha em um filme sobre polarização e enfraquecimento da democracia).
De início, já há um problema factual quanto ao desemprego, consoante com a narrativa de Petra de que o governo inclusivo de Lula e, depois o de Dilma, teriam levado a um golpe (após a presidente ter enfrentado as elites econômicas). Segundo Petra “a taxa de desemprego atinge o menor índice da história” na Era Lula.
Com boa vontade, pode-se dizer que a diretora se confundiu: nos governos do PT o desemprego alcança o menor índice da série histórica. Falamos em série histórica quanto à série feita com a mesma metodologia que a pesquisa corrente, o que no caso da atual começa em 2012 (a Pnad Contínua). Antes dela, a mais usada regredia só aos anos 90.
Mas tanto nos anos 80 quanto na ditadura militar se identificaram taxas de desemprego menores que as do período de Lula ou Dilma. O IBGE chegou a registrar menos de 3% no governo Sarney em outra versão da Pnad. Outras fontes registraram ainda menos na ocasião do milagre dos anos 70. O economista Rafael Baccioti fez exercícios de retropolação da Pnad Contínua e estimou resultados no mesmo sentido. Já o Censo chegou a registrar menos de 2% diversas vezes desde os anos 50. Em suma, Petra poderia ter dito “a taxa de desemprego atinge o menor índice da história desde o governo Fernando Henrique”.
O que são mesmo marcas incontestes do áureo período petista são as mínimas históricas nas taxas de pobreza e a queda na desigualdade de consumo.
Já o argumento de que o “golpe” teria sido causado porque Dilma, contrariamente a Lula, enfrentou as elites, envelheceu mal. De outro prêmio, o Jabuti, o livro do ano mostra como o 1% mais rico manteve sua altíssima participação na renda nacional durante os governos do partido.
Particularmente fora de lugar é a tese de que o impeachment seria decorrência da tentativa de Dilma de reduzir os juros. A Selic bateu sucessivas mínimas históricas desde Temer, e os bancos projetam juro real próximo de zero neste ano. Os juros transferidos pelo governo por conta da dívida pública caíram de mais de 8% do PIB no último ano de Dilma, para menos de 5% no ano passado. No caso das famílias, o governo Bolsonaro acaba de impor um teto aos juros do cheque especial.
Mas mesmo Petra não parece botar fé no argumento, e é por isso que sua visão é confusa: a crise ora foi causada pela queda nas commodities e “erros econômicos”, ora por ações conspiratórias das elites (com direito a fala de Jean Wyllys). Ora os donos do dinheiro desligaram a economia para estimular o impeachment, ora precisam do impeachment para transferir a conta da crise para os pobres.
A trama pelos juros altos também não faz sentido diante daquele que para Petra seria um dos vencedores do golpe: a Bolsa de Valores (a relação é tipicamente a contrária). O leilão recente de Libra, sem interessados, vai de encontro à versão de entrega do petróleo às multinacionais. E o fígado fala mais alto no argumento nonsense de que o mercado financeiro celebrara uma suposta flexibilização do trabalho escravo.
Mas ficamos por aqui: ninguém merece economista falando de cinema. Um documentário ainda é um filme, que provoca emoção pelas suas qualidades artísticas e não por ser um trabalho acadêmico. Petra deixa claro sua parcialidade. Reações semelhantes às do Brasil devem ter sido observadas em outros documentários políticos que o Netflix emplacou no Oscar recentemente, como Winter on Fire (Ucrânia) e The Square (Egito). Econosplaining à parte, boa sorte Petra.
* Doutor em economia