Ao sugerir que livros sejam ‘suavizados’, Bolsonaro segue script de todo candidato a autocrata
Retorno hoje a este espaço depois de um breve recesso de ano-novo. Para ele, escolhi dois livros tirados da estante de “ficção”, mas que se mostraram perturbadoramente atuais. Primeiro devorei Submissão, do francês Michel Houllebecq. Depois, ainda abalada, enfileirei finalmente O Conto da Aia, de Margaret Atwood. Duas distopias que têm em comum, além da discussão sobre fanatismo religioso e sua imbricação com o poder, o ataque à educação, e aos livros como seu combustível. De volta à realidade (sic), encontro Jair Bolsonaro estreando 2020 com um ataque aos livros didáticos, que, para ele, contêm um “amontoado” de coisa escrita e deveriam ser suavizados. Qualquer semelhança…
Todo candidato a autocrata tem horror ao conhecimento, à ciência, ao pensamento crítico, ao contraditório, a dados, evidências, fatos históricos, à dúvida, à filosofia, às ciências humanas, à pluralidade de pontos de vista, à palavra sem cabresto.
Não é à toa que não só as obras que me acompanharam nas férias, mas toda a literatura do gênero, tenham na destruição dos livros um ponto fulcral. No ano passado, convidada pelo Estado a listar livros para quem se interessa por política, recomendei o clássico sobre o assunto, Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, este devorado nos tempos de faculdade – ah, essa universidade pública subversiva –, em que a sociedade de um futuro então longínquo, e hoje assustadoramente familiar, é construída a partir da queima de todos os livros (o título faz referência à temperatura em que o papel entra em combustão) por “bombeiros”. Nada mais atual que esta ironia num país em que o ministro da Educação ofende os cidadãos nas redes sociais, não?
O problema dos livros didáticos brasileiros está longe de ser o fato de que contêm textos demais. Ao presidente do País e a seus auxiliares deveria caber zelar pela acuidade das informações publicadas, pela revisão da linguagem e, principalmente, pela didática.
Uma das grandes chagas da Educação brasileira é que os alunos não compreendem o que é ensinado. Não adianta simplificar o conteúdo dos livros até torná-los tatibitate, enchê-los de figuras e muito menos, a pretexto de “suavizá-los”, recheá-los de ideologia e narrativas convenientes ao poder de turno – o que, no fim do dia, é o desejo subjacente à fala depreciativa de Bolsonaro.
Depois de investir contra o suposto hermetismo do material oferecido aos alunos, o passo seguinte imediato de todos os que seguem a cartilha autoritária é passar a apontar nele riscos de “doutrinação”, de “alienação” ou de “falsificação” de tudo aquilo que contrarie as crenças, os valores e a leitura de mundo e da História sustentados pelo ocupante do poder da vez.
Ao criar uma narrativa absolutamente fantasiosa – bem mais que a criatividade dos mestres da ficção científica distópica poderia supor, uma vez que o artefato “mamadeira de piroca” não encontra paralelo nem na República de Gilead –, segundo a qual Paulo Freire é ensinado nas escolas para promover lavagem cerebral nas crianças, o “kit gay” vem na lista de material escolar e as universidades são lavouras de maconha em larga escala, o governo Jair Bolsonaro investe diuturnamente, de forma sistemática e absolutamente irresponsável, contra a Educação que prometia resgatar das trevas da “esquerda”.
O legado do PT na corrupção e na falência da economia brasileira é uma chaga que será difícil de aplacar e cujo horror levou a que o bolsonarismo cruzasse a fronteira das distopias e virasse realidade. Mas em nenhum momento o PT demonstrou pelo conhecimento o desapreço que o presidente e seu entorno não conseguem esconder e que parece que não sossegarão enquanto não transformarem em política de Estado.