Mensagens entre procuradores e membros da força-tarefa da Lava Jato, reveladas em 2019, expuseram os bastidores das investigações e podem mudar os rumos da operação
Regiane Oliveira e Marina Rossi, do El País
Em junho de 2019, quando o The Intercept Brasil divulgou a primeira reportagem feita com base em mensagens do Telegram que haviam sido entregues ao jornalista Glenn Greenwald por uma fonte anônima, a Lava Jato já estava consolidada como a maior operação anticorrupção do Brasil. Naquele momento, já havia derrubado empresários, colocado políticos como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na prisão e feito com que seu juiz mais eminente, Sergio Moro, da 13ª Vara de Curitiba, fosse convidado para ser ministro da Justiça do Governo recém-eleito de Jair Bolsonaro.
Até então os feitos da Lava Jato davam o tom dos noticiários. Todos seguiam atentos à divulgação das prisões cinematográficas e dos números grandiosos—centenas de conduções coercitivas, outras centenas de condenados, milhares de buscas e apreensões, bilhões de reais devolvidos aos cofres públicos. Até novos movimentos sociais foram criados para apoiar a missão do chefe da operação em Curitiba, o procurador Deltan Dallagnol. Curitiba se apresentava como o Brasil em cruzada contra a corrupção —e, de fato, trouxe avanços na área. Mas nem todo o Brasil se sentia representado por Curitiba.
Críticos afirmavam que a sacralização da Lava Jato abria espaço para justificar qualquer tipo de ação. Havia dúvidas sobre até onde a operação estaria esticando os limites da Justiça em vazamentos seletivos de informações sigilosas, suspeitas de violação do devido processo legal e do princípio da imparcialidade, além do uso de prisões para forçar acordos de delações premiadas. Muitos tinham convicção de que a operação tinha problemas, mas não tinham provas. Até a Vaza Jato colocar a credibilidade da operação em xeque.
À luz das conversas do Telegram, o agora ministro da Justiça e os procuradores se tornam protagonistas de uma trama que revelou as zonas cinzentas do funcionamento do Judiciário, onde as linhas que separam o que é ilegal, imoral e legítimo se confundem sob os olhos da Justiça e da opinião pública. Os documentos permitiram um mergulho nos bastidores da operação.
Desde a primeira reportagem feita pelo The Intercept Brasil com base nas conversas do Telegram, todos os envolvidos sempre negaram a veracidade das mensagens, afirmando que elas são produto de um crime por terem sido subtraídas dos telefones dos procuradores. Sergio Moro e a força-tarefa da operação afirmam ainda que se, de fato, fossem reais, não possibilitariam saber se foram ou não editadas e que, portanto, não serviriam como prova para nada. Mas elas mostraram, em muitos momentos, Moro orientando o procurador Dallagnol para que trocasse a ordem de fases da Lava Jato, cobrando agilidade em novas operações e até mesmo dando conselhos estratégicos e pistas de investigação, como se fosse seu superior hierárquico.
Chamado para se explicar na Comissão de Constituição, Cidadania e Justiça do Senado em junho, Moro repetiu que as mensagens foram adquiridas por “uma invasão criminosa” por meio de um grupo organizado e não por “adolescentes com espinhas”. No mês seguinte, quatro pessoas foram detidas suspeitas de hackear celulares de autoridades. Walter Delgatti Neto, um dos suspeitos, disse ter invadido o celular de um promotor de Araraquara (SP) e, a partir daquele aparelho, saltou de telefone em telefone até chegar em autoridades mais graúdas. Com isso, Delgatti Neto, que está preso até hoje, ganhou o apelido de hacker de Araraquara. Mas um relatório da Polícia Federal, concluído no último dia 18, apontou que o hackeamento começou pelo celular do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente da República, em março do ano passado. Segundo o documento, Deltan Dallagnol e o ministro Sergio Moro estão entre os alvos dos hackers. Os investigadores ainda avaliaram que os suspeitos “tinham a intenção explícita de interferir nas investigações de organizações criminosas que estão sendo conduzidas pela força-tarefa da Operação Lava Jato, tendo por objetivo final a obtenção de ganhos financeiros.”
As revelações da Vaza Jato
O EL PAÍS foi um dos veículos que teve acesso ao conteúdo das mensagens e o publicou. Primeiramente, procurou se assegurar da veracidade do material. Com auxílio de fontes externas, que viram suas conversas com procuradores divulgadas em meio ao material recebido pelo The Intercept, foi possível verificar a autenticidade do conteúdo.
Apenas em um segundo momento o EL PAÍS passou a pesquisar no banco de dados —em um trabalho bastante artesanal, feito por meio de buscas com termos pré-definidos, que retornavam milhares de resultados—. Diante da imensidão do material, era preciso ter um ponto de partida. E começou-se pelas dúvidas que foram levantadas durante os anos de cobertura da Lava Jato e também após o início da Vaza Jato: afinal, porque os procuradores confiaram tanto no Telegram? Qual era a relação entre a Lava Jato e os ministros do Supremo? Como foi recebida a nova procuradora-geral da República, Raquel Dodge? Onde foi parar a Lava Jato dos bancos tão prometida pela força-tarefa de Curitiba? Por que a força-tarefa de São Paulo parece tão inexpressiva quando comparada com a do Rio de Janeiro ou Curitiba? O que aconteceu nos bastidores da prisão do ex-presidente Michel Temer?
A partir destes questionamentos, foram cruzadas as informações encontradas nas mensagens, com confirmações de fontes e pesquisas sobre o que foi noticiado de cada assunto em cada momento da Lava Jato. Assim, foi revelado que a força-tarefa de Curitiba tinha um plano de ação que diferenciava a estratégia adotada contra empreiteiras e contra bancos. Enquanto as construtoras deveriam ser responsabilizadas por meio de ações penais, a meta para bancos era buscar acordos, a título de indenização. Paralelamente, Dallagnol realizou palestra para a Federação Brasileira de Bancos (Febraban). Sua assessoria afirma que o “procurador foi escolhido por preencher critérios técnicos relacionados ao tema e a sua participação foi remunerada e formalizada por meio de contrato”.
Um exemplo dessa estratégia utilizada com as instituições financeiras foi um acordo da Lava Jato que blindou o banco Safra de punições por negociar com o doleiro Alberto Youssef. A força-tarefa arquivou em outubro do ano passado o inquérito que investigava conduta suspeita do banco em empréstimo ao doleiro.
Também foi descoberto que a força-tarefa de Curitiba planejou buscar na Suíça provas contra o ministro do STF Gilmar Mendes, um conhecido crítico da operação. Procuradores discutiram usar o caso de Paulo Preto, considerado operador do PSDB, para reunir munição contra ministro. As conversas apontaram ainda o empenho da força-tarefa pelo impeachment do magistrado.
O cruzamento de informações com as mensagens encontradas também mostrou que às vésperas do afastamento de Dilma Rousseff da Presidência, em 2016, a Lava Jato rejeitou a delação que acabou prendendo Temer em 2019. As conversas no Telegram mostram que, à época, a procuradoria não viu interesse público nas acusações contra o então vice-presidente.
A apuração mostrou que procuradores tratavam a chefe Raquel Dodge, então procuradora-geral da República, como um entrave para operação. Eles buscaram driblá-la e planejaram vazamentos de informação na imprensa para pressioná-la a liberar ao STF delações, entre elas, a de Léo Pinheiro, da construtora OAS, uma testemunha-chave de casos que incriminam o ex-presidente Lula.
Foi por meio dessa investigação que foi possível revelar que a força-tarefa de São Paulo era considerada o elo fraco da operação por Curitiba e conflitos entre os membros fizeram com que a equipe implodisse em dezembro de 2018. Daí a menor visibilidade da procuradoria paulista diante dos trabalhos realizados em Curitiba e no Rio de Janeiro.
Os procuradores de Curitiba, em sua confiança cega no aplicativo Telegram, o utilizaram, inclusive, para enviar documentos sigilosos, como a proposta de delação do ex-ministro Antonio Palocci, documento que deveria estar protegido pela lei da colaboração premiada.
Ainda não é possível medir exatamente os impactos da Vaza Jato para a operação deflagrada em 2014. O STF já vem realizando movimentos para tentar corrigir seus excessos. As conduções coercitivas, um instrumento comum da operação, já haviam se tornado ilegais em junho de 2018, em uma votação apertada (6×5) na Corte. Ministros do Supremo Tribunal Federal já afirmaram que verificarão a autenticidade do material e que ele pode influenciar o julgamento de futuros casos.
Está na na fila para ser votada pelos ministros a suspeição de Sergio Moro, pedida pela defesa de Lula e que pode anular o processo do tríplex do Guarujá, que já condenou o ex-presidente em três instâncias. No habeas corpus, que já havia sido pedido antes das revelações da Vaza Jato, os advogados do petista anexaram as mensagens trocadas por procuradores para reforçar a tese da defesa de que Moro atuou com “parcialidade” quando era juiz da Lava Jato.
Foi também depois da Vaza Jato que os magistrados acordaram em fixar tese sobre manifestações de réus e delatores nos processos da operação. No entendimento dos ministros, a ordem em que as defesas são feitas pode influenciar na sentença. Por isso, o acusado deve ser o último a fazer sua defesa, depois de todos os delatores. Esse entendimento ainda pode beneficiar dezenas de presos pela operação. Mas o golpe mais forte sofrido pela Lava Jato até agora talvez tenha sido a reversão do entendimento sobre a prisão em segunda instância, realizada também pelo STF. A decisão nocauteou a operação, tirando da cadeia o ex-presidente Lula.