Tolerância deve ser a virtude consolidadora da República nestes tempos de confronto
Em 14 de maio de 1989 publiquei artigo na Folha de S.Paulo em que ponderava ser o momento propício a seduções inconsistentes, como se via no sucesso de Fernando Collor nas pesquisas eleitorais, sobressaindo a postura impetuosa do candidato como caçador de marajás. Lembrava então que conteúdo, passado político e compromisso com a liberdade eram desprezados, valendo mais buscar um salvador sem maiores avaliações ou perquirições. E indagava se seria Collor moralizador da administração, pois quando prefeito biônico de Maceió nomeara mais de 4.500 funcionários, a maioria apaniguados.
Seria consolidador da democracia o jovem deputado federal Collor, que votara contra a emenda da eleição direta para presidente? Seria instrumento de justiça social o deputado que apoiou os decretos de arrocho salarial? Seria Collor o construtor do futuro, pois preferira votar em Paulo Maluf, e não Tancredo Neves, para presidente? E concluía que o momento requeria muito mais que impensadas saídas milagrosas. Mas pouco valiam tais considerações!
Já em maio de 2018, igualmente ano de eleições, disse em artigo publicado nesta página: “Assusta que o pré-candidato Bolsonaro arregimente adeptos quando suas ideias são manifestamente elogiosas à violência na política”. Trazia para aumentar esse espanto exemplos de suas manifestações, pois aplaudia a tortura como meio de obtenção de prova; a seu ver, “o erro da ditadura foi torturar e não matar”; “Pinochet devia ter matado mais gente”; “não poderia amar um filho homossexual”. Terminava o artigo considerando que aceitar essa candidatura presidencial, alimentada por tais ideias, seria a volta piorada da ditadura pela via do voto. Mas pouco valiam tais considerações!
Ambos, Collor e Bolsonaro, terminaram o primeiro ano de mandato, conforme indica o “monitor-popularidade” do Estadão, com reduzidas taxas de satisfação, abaixo de 30%, tendo os dois iniciado o governo com mais de 50%. Vê-se, portanto, que a impensada busca de um salvador, tratado como mito, se decompõe facilmente, mesmo porque a decepção não decorre apenas das exageradas expectativas positivas, mas da realidade negativa não visualizada pela emoção dominante durante o processo eleitoral, que disfarça a face verdadeira do preferido nas urnas.
As circunstâncias de ambos em seguida ao primeiro ano do mandato têm aspectos parecidos e diversos. Após o fracasso do Plano Collor, a inflação reincidia e se instalara um processo recessivo. Collor envolveu-se nas tramas corruptas de seu auxiliar predileto, PC Farias, e a cada dia perdia força no Congresso Nacional, estando sem partido. Decrescia o respeito da sociedade civil.
Com Bolsonaro, a inflação está contida e há melhora da economia, mas não tanto quanto desejam alguns agentes econômicos. Mas há uma grande pedra no sapato, relativa à possível corrupção familiar no que tange ao emprego dos membros da família da ex-mulher do presidente no gabinete do então deputado Flávio Bolsonaro, com participação nos salários auferidos, além das investigações sobre as relações do clã com milícias fluminenses. Bolsonaro não tem articulação política no Congresso, está sem partido e não terá tão cedo. A sociedade civil o deplora.
Mas há um fator fundamental existente à época da debacle de Collor e inexistente hoje: a presença de líderes capazes de construir uma conciliação, um ponderado centro político garantidor de harmonia social, representado por homens como Ulysses Guimarães, Fernando Henrique Cardoso, Mário Covas, Franco Montoro, Antônio Carlos Magalhães, Marco Maciel.
Exemplo da importância dessa circunstância está no seguinte episódio: como um dos redatores do impeachment de Collor, fui procurado por chefes militares em vista também de minhas relações com Ulysses e com os líderes do PSDB. Esses militares desejavam saber se essas lideranças apoiariam o governo Itamar Franco, pois a única preocupação do setor fardado era com a governabilidade. A resposta, como não podia deixar de ser, foi positiva. E esses líderes conduziram o País em conjunto com Itamar, tornando-se viável o Plano Real.
Fácil é pretender exercer o poder com radicalismos e demagogia. Difícil é ter autoridade na conciliação, buscando impor harmonia e acatamento por via de compromisso que reúna os diversos atores, com a escolha consentida e refletida de prioridades e pela negociação tolerante, que ameniza o conflito sem eliminá-lo, supera os impasses e se prepara para os próximos, evitando desbordar na violência.
Os conflitos são perenes, mas com ponderação e persuasão se formulam caminhos temporariamente redutores de embates. Numa época de tanta paixão, de comunicação impensada e rápida pelas redes sociais, é ainda mais necessária uma autoridade que se afirme por gerar confiança sopesada e consistente.
Para tanto há de se ter lideranças que tenham por alicerce a coragem de reconhecer no antagonismo não o desastre fatal, a fraqueza, mas a própria força da democracia. Tolerância deve ser a virtude consolidadora da República nestes tempos escuros de confrontos à flor da pele.
Esse o grande desafio para 2020. Pouco se pode esperar de Bolsonaro como mediador de controvérsias. Ao contrário. De outra parte, o governo não tem no Congresso líderes que possam falar por ele, estabelecer prioridades e conseguir compor propostas negociadas para superar divergências nas reformas tributária, administrativa e política e no combate à desigualdade social.
Assim, com presidente tosco e na falta de chefias partidárias capazes de assumir a condução da grande política, a sensação é de um país em busca sôfrega de recuperação econômica que supra as deficiências da ausência de comando, antes que o descontentamento e a descrença nos Poderes constituídos venham a materializar-se nas ruas. Nosso futuro é opaco, sem perspectivas claras.
* Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça