O comunismo na ficção e na eleição em 85 anos
O lançamento do Aliança pelo Brasil (APB) reflete a atualidade de um dos romances seminais da literatura brasileira, “S. Bernardo”. A trajetória do homem simples que se tornou um rico produtor rural, egocêntrico e autoritário, completou 85 anos.
A afinidade entre o partido do presidente Jair Bolsonaro e a trama de Graciliano Ramos (1892-1953) converge na imaginária ameaça comunista, no cenário de grave crise econômica, instituições fragilizadas e exaltação da fé religiosa.
O Aliança pratica a defesa do “livre mercado, da propriedade privada e do trabalho, e repudia o socialismo e o comunismo”, anunciou a advogada Karina Kufa no ato de fundação da sigla há cinco dias. Instantaneamente, ressoaram as palavras de ordem do bolsonarismo: “A nossa bandeira jamais será vermelha”.
Impressiona que os preceitos de um partido do século XXI – quando a China comunista se tornou referência capitalista no mundo – remontem ao Brasil do início do século XX. Na revolução de 1930, uma aliança com os militares, e não com os comunistas, alçou Getúlio Vargas (1882-1954) ao poder.
As premissas do Aliança convidam a uma angustiante viagem ao passado. É lamentável que a economia recessiva, na esteira da crise de 1929, dialogue com o cenário econômico atual. No início dos anos 30, o país amargava os efeitos da falência da cafeicultura, no ocaso da política do café-com-leite, enquanto o ministro da Fazenda, Oswaldo Aranha, renegociava a dívida externa e o câmbio despencava.
Passados 90 anos, a economia também resfolega, sofrendo as consequências de uma instabilidade política que remonta às eleições de 2014, agravada pelo impeachment de 2016 e o aprofundamento de uma polarização que não dá sinais de esgotamento.
Assim como em 1930, o desânimo e a insatisfação contaminam os brasileiros. O contraste é que se no Brasil dos anos 30 os focos revolucionários culminaram na insurreição paulista de 32, hoje os brasileiros parecem conformados.
“S. Bernardo” foi publicado em 1934, mas Graciliano Ramos começou a esboçá-lo dois anos antes, em plena revolução constitucionalista, quando Getúlio ainda não havia se consolidado no cargo. Ambientado na área rural de Alagoas, terra natal do autor, os personagens receiam que o agravamento da turbulência abra caminho para o comunismo.
Esse temor é tratado no livro com fina ironia, já que o velho Graça era comunista e o sistema nunca chegou perto de ser implantado no país. O escritor só viria a se filiar ao PCB em 1945, mas viu-se perseguido e preso pela política getulista um ano antes do golpe de 1937.
Com a razão comprometida pelo ciúme obsessivo, o fazendeiro Paulo Honório, proprietário de S. Bernardo – um dos personagens mais irascíveis e cruéis da literatura brasileira – enxerga a ameaça comunista ao seu lado na cama.
“Sim, senhor, conluiada com o [professor] Padilha e tentando afastar os empregados sérios do bom caminho. Sim, senhor, comunista! Eu construindo, ela desmanchando!”, praguejou sobre a esposa Madalena.
Numa passagem do romance, ele se queixa de ter gastado uma pequena fortuna com a compra de material escolar para os alunos da escola que inaugurou visando a obter benesses do Estado. “O governador se contentaria se a escola produzisse alguns indivíduos capazes de tirar o título de eleitor”, calculou.
Mas a esposa o pressionava para reformar o prédio, comprar um globo terrestre, cadernos para os alunos – “despesa supérflua” – e a melhorar a qualidade de vida do professor, Luís Padilha. Quando é demitido por conspiração, Padilha culpa Madalena. “Seu Paulo embirra com o socialismo. É melhor a senhora [Madalena] deixar de novidade, essas conversas [sobre justiça social] não servem”, lamentou.
Outra premissa do Aliança pelo Brasil é de que o partido “não pratica a exclusão de Deus da vida” e “prega a moral judaico cristã”. A relação estreita entre política e religião marca a legenda e é pano de fundo do romance.
Um dos personagens principais é o padre Silvério, influente na cidade e com nuances socialistas, mas que refreia seus instintos políticos.
Durante um jantar na casa de Paulo Honório e Madalena, o padre Silvestre defendeu a necessidade de “reformas”, mas não o comunismo, porque este gera “miséria, a desorganização da sociedade, a fome”.
O vigário enfatiza que o comunismo no Brasil seria “lorota” e não pegaria porque o povo brasileiro “tem religião, é católico”. Convicto de que estaria sendo traído – o que nunca ocorreu – o fazendeiro vocifera contra a esposa, mais afeita à literatura, às artes em geral e à política que à leitura da Bíblia: “comunista, sem religião”, vociferou em outro trecho.
O repúdio ao comunismo e ao socialismo – “ideologias nefastas”, conforme o documento do Aliança – é relativizado na prática se o fundador do Aliança ocupa a presidência da República.
Há um mês, Bolsonaro foi recepcionado pelas três principais lideranças da China em plena comemoração dos 70 anos da Revolução Comunista.
A China governada pelo Partido Comunista é o principal parceiro comercial do Brasil: o superávit brasileiro é de US$ 29 bilhões. O Brasil é o quarto principal destino dos investimentos chineses no mundo. São 45 anos de relação bilateral, inauguradas em 1974 pelo presidente Ernesto Geisel, em pleno regime militar brasileiro. Ainda durante a campanha, Bolsonaro se indispôs com os chineses, mas o pragmatismo prevaleceu depois da posse. A retórica ideológica, no entanto, persiste no plano eleitoral.
Na China
Por falar em “comunismo”, ontem a governadora do Rio Grande do Norte, Fátima Bezerra, do PT, desembarcou em Pequim a convite do Bank of China para abrir o seminário “Um Cinturão, Uma Rota”, direcionado aos países de língua portuguesa. Ela é a única governadora brasileira no evento. Em outubro, ela selou contrato de exportação de melão potiguar para a China – os primeiros contêineres saem em fevereiro do ano que vem. O acerto deve gerar 10 mil novas vagas no setor em três anos.