Conflitos e instabilidades na América Latina confirmam estereótipo de uma região de quarteladas, rupturas e quebras de contratos
O tumultuado voo de Evo Morales até a Cidade do México mostra a dimensão da crise da América do Sul, uma região polarizada em que os governantes têm dificuldades de entender até a natureza do direito de asilo. O avião foi superando, com dificuldades, as proibições de sobrevoo de territórios de países vizinhos. O Brasil poderia em outra situação participar da negociação não só para a viagem de Evo, como estimular esforços da Bolívia para uma saída constitucional. A diplomacia brasileira já solucionou conflitos na região, sendo o polo da moderação. Mas isso foi há muito tempo. Entrou por uma linha ideológica nos governos do PT e agora foi para a linha oposta, e ainda mais radicalizada.
O momento em que o futuro presidente da Argentina, Alberto Fernández, negociou com o presidente Mario Abdo Benítez, do Paraguai, para que o avião que trazia Evo pudesse pousar em Assunção mostra bem a falência da diplomacia brasileira. Até pelos seus padrões, que é de identidade ideológica, o Brasil poderia ter sido o interlocutor de Mario Abdo. Mas o Brasil abriu mão de qualquer liderança na região. Tudo o que se sabe é que o chanceler brasileiro recebeu, tempos atrás, Luis Fernando Camacho, exatamente quem tem demonstrado o maior desprezo pelo ritual democrático e sequer tem mandato. Camacho defende que uma junta assuma, enquanto Carlos Mesa, candidato que estava em segundo lugar, prefere que se encontre um caminho constitucional. Ontem, depois de mais um dia de impasse, e em uma sessão sem quórum, a senadora Jeanine Áñez se autoproclamou presidente do Senado e, portanto, presidente interina da República. Precisa conquistar legitimidade.
A discussão sobre se é ou não golpe é ociosa. Se os chefes militares se reúnem em frente à televisão para pedir a renúncia de um presidente, evidentemente não é uma saída espontânea. Com a força de suas armas não podem ser contestados. Evo renunciou, mas não o fez por sua própria vontade. Por outro lado, Evo Morales já havia perdido parte dos aliados. Apesar de tudo, ainda existe a possibilidade de uma saída constitucional na Bolívia.
Evo Morales conduziu um governo bem-sucedido, com inegáveis avanços econômicos e sociais. Foi o primeiro presidente indígena, depois de todos os anteriores de origem europeia. Fez um forte programa de inclusão. O país cresceu de forma expressiva e reduziu a pobreza. Teria passado à história por seus bons indicadores e boas políticas, não fosse o erro do continuísmo. Se o terceiro mandato já foi conseguido por uma manobra, ao tentar o quarto mandato ele estava flagrantemente desrespeitando a Constituição, escrita em seu governo, e desobedecendo o resultado do referendo de 2016. Todo mundo viu o que o continuísmo chavista fez na Venezuela. Por isso, tanta gente da região tem medo dos projetos continuístas à esquerda ou à direita. Por outro lado, o tipo de liderança carismática e centralizadora de Evo não costuma fazer herdeiros. Esse foi seu erro principal. Em vez de continuar de forma personalista, poderia ter garantido a sobrevivência do projeto formando lideranças robustas no Movimento ao Socialismo (MAS).
A série de conflitos e instabilidades na América Latina confirma o estereótipo de uma região de quarteladas, rupturas e quebras de contratos. Isso espanta investidores. O Brasil não ajuda, porque apesar de ser um país gigante do ponto de vista territorial, decidiu apequenar a sua diplomacia. E, mesmo sendo uma democracia, tem um presidente que tem um discurso autoritário.
Problemas, interesses comuns e complementariedades deveriam aproximar os países da região, mas eles vivem em disputas sem sentido. De todas, a pior delas é a que agora divide países entre governantes de esquerda e de direita. O povo foi para as ruas da Bolívia contra Evo, como está nas ruas do Chile contra Sebastián Piñera. O grande dilema que todos os países enfrentam é como manter as instituições democráticas, reduzir as desigualdades e ter crescimento sustentado e sustentável. Evo Morales chegou ao exílio no México sugerindo que caiu por ser contra o imperialismo. Aqui no Brasil, Bolsonaro diz que luta contra o comunismo. Enquanto líderes de campos opostos brigam contra fantasmas, como se estivessem presos do túnel do tempo, os problemas reais e atuais se agravam.