Luiz Carlos Azedo: Supremo em transe

“A decisão do STF foi doutrinária, mas está contaminada pelo caso do ex-presidente Lula, cuja defesa deve pleitear sua libertação imediata”.
Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF (21/03/2019)
Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF (21/03/2019)

“A decisão do STF foi doutrinária, mas está contaminada pelo caso do ex-presidente Lula, cuja defesa deve pleitear sua libertação imediata”

Por seis a cinco, o Supremo Tribunal Federal (STF) restabeleceu o princípio do “trânsito em julgado” para execução da pena, mudando o entendimento da Corte quanto à execução após condenação em segunda instância. A decisão não altera a Lei da Ficha Limpa, que proíbe candidaturas de políticos condenados em segunda instância, caso do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas pode resultar na sua libertação, pois o petista cumpre pena na Superintendência da Polícia Federal, em Curitiba, em razão de condenação no caso do tríplex do Guarujá. Não haverá, porém. Libertação automática de ninguém.

Segundo o ministro Dias Toffoli, presidente da Corte, cujo voto desempatou o julgamento, há no país 840 mil pessoas presas, 41,5 % (cerca de 348 mil) sem nenhuma condenação; em execução provisória, por condenação em primeira instância, 192 mil presos; em execução definitiva, em razão do transitado em julgado, 214 mil pessoas; e presos civilmente, por pensões alimentícias, 2,1 mil pessoas. Por essa razão, Toffoli classificou como “lenda” a tese de que vigora no país um regime de impunidade, quando ocorre o contrário. Citou o caso dos condenados do “mensalão” para refutar os argumentos de que políticos e empresários não são condenados pelo Supremo porque têm bons advogados.

Como a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) já havia reduzido a pena imposta ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no caso do tríplex no Guarujá, Lula já está condenado em terceira instância, porém, ainda tem direito a recursos, inclusive no Supremo, ou seja, a sua condenação não transitou em julgado. Em abril deste ano, o relator, Felix Fischer, e os ministros Jorge Mussi; Reynaldo Soares da Fonseca, presidente da turma; e Marcelo Navarro concordaram em reduzir para 8 anos, 10 meses e 20 dias de reclusão a pena de 12 anos e um mês por corrupção passiva e lavagem de dinheiro que havia sido imposta pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) no caso do tríplex.

No julgamento de ontem, votaram por manter a condenação em segunda instância os ministros Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux e Cármen Lúcia. Contra a prisão em segunda instância, Marco Aurélio, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Celso de Mello, além do presidente da Corte. A mudança de entendimento de Gilmar Mendes e Dias Toffoli sobre a questão e o voto de Rosa Weber (que em decisões anteriores votara pela execução da pena em razão da jurisprudência do tribunal, mas que sempre fora por princípio contra esse entendimento), selaram o destino do julgamento.

Presunção de inocência
A decisão do Supremo foi de natureza doutrinária, mas está inevitavelmente contaminada pelo caso do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, cuja defesa deve pleitear sua libertação imediata. Prevaleceu o entendimento literal do que está previsto na Constituição em relação à presunção de inocência. Trata-se do artigo 5º, inciso LVII: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Em razão desse princípio, o direito do réu a responder a processo em liberdade é a regra, e a prisão, exceção.

Com a decisão de ontem, o Supremo retomou o entendimento de fevereiro de 2009, quando, por sete votos a quatro, decidiu que um acusado só pode ser preso depois de sentença condenatória transitada em julgado. Naquela ocasião, foi decisivo o voto do ministro Eros Grau: “A prevalecerem razões contra o texto da Constituição melhor será abandonarmos o recinto e sairmos por aí, cada qual com o seu porrete, arrebentando a espinha e a cabeça de quem nos contrariar. Cada qual com o seu porrete!”

A decisão do Supremo Tribunal Federal, porém, não elimina a prisão cautelar devidamente aplicada, com função exclusivamente processual, desde que não se destine a punir antecipadamente, pois não tem caráter de sanção como a prisão penal. No entanto, se usada com fins punitivos, será considerada ofensiva aos princípios constitucionais, como o da presunção de inocência e do devido processo legal. O princípio da liberdade é incompatível com a punição sem processo e a condenação sem defesa prévia.

Pela doutrina adotada, a gravidade do crime, a natureza da infração, a ausência de vinculação do indiciado ao distrito da culpa, por si só não autorizam a decretação de prisão cautelar, ainda que a acusação seja por crime hediondo. Também a recusa em responder interrogatório, em cooperar com as investigações, esta ensejará prisão cautelar do acusado. Faz parte dos direitos dos réus, enquanto inocente presumido, ser tratado como tal, e não como culpado. É aí que o bicho pega.

A opinião pública, majoritariamente, não aceita esse entendimento, por várias razões, entre as quais a alegada impunidade dos crimes de colarinho-branco, devido à morosidade da Justiça, e a constatação, pela Operação Lava-Jato, de que havia corrupção sistêmica no governo e nos principais partidos do país. Foi esse ambiente que levou o Supremo a firmar a jurisprudência sobre a execução da pena após condenação em segunda instância, no rastro da Lei da Ficha Limpa e no auge da Lava-Jato. Excessos cometidos por procuradores e juízes da força-tarefa da Lava-Jato em Curitiba, e a mobilização de advogados e setores da magistratura, porém, provocaram a mudança de entendimento de ontem.

Nas entrelinhas: Supremo em transe

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