Guilherme Amado: O decano a mil por hora

Desde 2018, Celso de Mello se tornou a mais altiva voz do Supremo ante investidas contra a democracia e os direitos fundamentais.
Foto: Nelson Jr./SCO/STF
Foto: Nelson Jr./SCO/STF

Desde 2018, Celso de Mello se tornou a mais altiva voz do Supremo ante investidas contra a democracia e os direitos fundamentais

Os 30 anos de Celso de Mello no Supremo Tribunal Federal (STF), recém-completados em julho, poderiam fazer com que os últimos meses do decano na Corte fossem de inabalável calmaria. Aos 74 anos — celebrados na sexta-feira 1º —, Mello não precisa mais provar nada a ninguém. Exatamente a um ano de deixar o tribunal, em 31 de outubro de 2020, nenhum colega ou analista do STF criticaria se Mello preferisse nestes últimos meses uma atuação discreta, sem protagonismo, mais preocupada em arrumar gavetas e planejar o que fará em seguida. Mas o Celso de Mello dos últimos dois anos tem sido o oposto.

Desde 2018, ele se tornou, menos pelo tom barítono e mais pelo acúmulo de experiência e pela previsibilidade de decisões, a mais altiva voz do tribunal ante investidas de militares ou do próprio presidente da República e de sua família contra a democracia e os direitos fundamentais. Agora, está nas mãos dele um dos votos mais esperados do tribunal: dizer se Sergio Moro foi ou não parcial ao julgar Lula. Tudo isso a 365 dias de se aposentar.

Promotor de Justiça em São Paulo e assessor jurídico do gabinete de José Sarney, Celso de Mello chegou ao STF indicado pelo próprio, em 1989, num tempo em que ministros da Corte não tinham um décimo dos holofotes que têm hoje. Durante três décadas, acostumou-se a viver sem eles. Nunca teve outro emprego ou fonte de renda de lá para cá. Não frequenta as rodas de poder de Brasília nem teve proximidade com qualquer presidente da República após Sarney. Evita encontrar advogados fora do gabinete e são raras suas entrevistas. Seu passeio nos fins de semana em São Paulo ou em Brasília é em livrarias. Entre goles generosos de café e uma dieta recheada de alguns Big Macs, é notívago e gosta de citar em seus votos as próprias decisões, ora textualmente, ora adaptando e melhorando trechos.

A repetição de suas teses e seus entendimentos, aliás, faz com que seus votos sejam, na maioria das vezes, previstos por quem tenta decifrar a matemática em torno dos 11 togados. Como anotaram os repórteres Felipe Recondo e Luiz Weber em Os onze , livro em que perfilam o tribunal e seus atuais ocupantes, os votos de Mello costumam dar uma sensação de déjà-vu. O respeito às regras e aos costumes do tribunal foi o que o fez, por exemplo, recusar a sondagem da então presidente do STF Cármen Lúcia para designá-lo relator da Lava Jato, o que atropelaria o algoritmo que distribui aleatoriamente os casos entre os ministros.

Mello viveu a ditadura e carrega a lembrança do preço pago pelo país com o arbítrio. Enquanto promotor, denunciou torturas e outras ilegalidades cometidas pelo regime. Talvez aí tenha se forjado a preocupação que o leva a ser o único a usar palavras duras para se referir ao que considera ameaças de fardados e de Bolsonaro ao tribunal.

Uma das manifestações mais fortes foi contra o então comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, que, na véspera do julgamento do habeas corpus de Lula, mandou um recado velado ao STF em uma mensagem publicada em sua conta do Twitter. Na ocasião, o decano se impressionou com o silêncio de seus colegas, especialmente os que costumam comentar publicamente fatos sem a mesma importância. A resposta veio na sessão: “Em situações tão graves assim, costumam insinuar se pronunciamentos ou registrar se movimentos que parecem prenunciar a retomada, de todo inadmissível, de práticas estranhas e lesivas à ortodoxia constitucional, típicas de um pretorianismo que cumpre repelir, qualquer que seja a modalidade”. Não foi o último embate com a turma verde-oliva.

No período eleitoral, com um crescente ataque ao STF e à Justiça eleitoral e diante do líder das pesquisas, Jair Bolsonaro, estimulando a desconfiança na lisura do processo, um coronel reformado ofendeu Rosa Weber, então presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Mello saiu em defesa da colega, afirmando que o ataque era “imundo, sórdido e repugnante” e que usava linguagem “insultuosa, desqualificada por palavras superlativamente grosseiras e boçais, próprias de quem possui reduzidíssimo e tosco universo vocabular, indignas de quem diz ser oficial das Forças Armadas”.

Ninguém pode rotular Mello de petista. Pelo contrário: condenou petistas no mensalão e na maioria de seus votos nos anos do PT foi contra as teses defendidas por Lula ou Dilma. Passado o julgamento no plenário sobre a condenação em segunda instância, deverá ser marcado o julgamento na Segunda Turma da Corte em que cinco ministros decidirão se Moro não teve isenção para julgar Lula. A decisão terá forte impacto político, a depender da modulação a ser feita pelos ministros. É possível até que todos os casos de Lula que tiveram o dedo de Moro retroajam para antes da aceitação da denúncia e algumas provas sejam para sempre invalidadas. Lula pode se tornar não só um cidadão livre, como retomar de imediato seus direitos políticos.

Mesmo antes da Vaza Jato, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski já haviam acenado que votarão contra Moro. Cármen Lúcia e Edson Fachin, a favor do ex-juiz. E Celso de Mello?

Embora o decano não tenha afirmado nada nesse sentido, a aposta entre os ministros é que ele vote com Mendes e Lewandowski. Se o plenário tiver decidido que prisão é só após a condenação definitiva, Lula já estará livre, e a pressão sob Mello será menor.

Há pressões, entretanto, que têm inspirado Mello mais que intimidado. Em fevereiro deste ano, ele liderou a votação pela criminalização da homofobia, um tema cujo avanço a bancada evangélica freava no Congresso. Seu voto, que citou explicitamente a necessidade de ir contra a lógica do “menino veste azul e menina veste rosa”, dobrou ministros que tendiam a votar contra. O STF mostrava, logo no começo do ano, certa altivez diante de um governo que desde a campanha enviava mensagens estranhas à cúpula do Judiciário. Não seria assim ao longo dos dez meses de Bolsonaro.

Antes disso, ainda na campanha, o então candidato falou em aumentar o número de ministros da Corte, a exemplo do que a ditadura fez com o Ato Institucional nº 2. Quando veio à tona o vídeo de Eduardo Bolsonaro, numa aula preparatória para concursos, dizendo que bastaria um “soldado e um cabo” para fechar o STF, o decano decidiu falar e respondeu à Folha de S.Paulo , chamando a declaração de “inconsequente e golpista”.

Nesta terça-feira 29, Mello voltou novamente suas baterias a Bolsonaro, diante da postagem no perfil do presidente no Twitter do vídeo de um leão cercado por hienas — uma delas rotulada como o STF. Em sua mais dura nota, falou em “atrevimento presidencial”, que “parece não encontrar limites na compostura que um chefe de Estado deve demonstrar no exercício de suas altas funções”. Foi aí que Bolsonaro recuou.

Ainda há um ano de Celso de Mello no tribunal. Após sua saída, o decano será Marco Aurélio Mello, de comportamento excêntrico e votos imprevisíveis. Marco Aurélio Mello ficará na posição até 11 de julho de 2021. Depois, a função que até aqui teve o papel de apaziguar ânimos e muitas vezes serenar relações acaloradas estará nas mãos de… Gilmar Mendes.

Privacy Preference Center