Morris Kachani: Anjo Exterminador assombra Brasília

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Na paisagem desalentadora de Brasília, deparamos atualmente com a figura errática de um Ministro da Cultura interino, que pediu para ser exonerado há um mês, mas não foi. Ele, um ex-militante comunista, de matriz gramsciana, autor profícuo com obra premiada e associada ao cinema político, que viveu e vive o drama de consciência, de fazer parte de um governo que tentou extinguir a pasta, e que contou com três titulares para pilotá-la no período de um ano.

A respeito de sua obra cinematográfica, que inclui clássicos como ‘O Homem que Virou Suco’ e ‘Vlado – 30 anos depois’,  já se escreveu, “é um cinema que submete a realidade a questionamentos, feito por quem acredita firmemente na necessidade de mudar o mundo”.

Não por acaso, as primeira palavras de João Batista de Andrade, 77 anos, ao receber o Inconsciente Coletivo, foram em referência à obra-prima de Luis.

“É como se eu fosse um dos personagens deste filme. Ninguém encontra a porta de saída”, comentou ele, fazendo alusão à situação um tanto claustrofóbica vivida pelos convidados desta célebre festa sem fim, filmada pelo mestre do surrealismo.

Foi uma conversa ilustrativa, e um tanto desanimadora. João falou sem amarras sobre a situação degradante do Ministério – 20 mil contas a prestar atrasadas, livros e documentos torrando nas estantes da Biblioteca Nacional, a 39 graus, sem ar condicionado, ou talvez pior, a ciranda política em torno das nomeações dos cargos executivos, em meio ao corte de 43% do já minguado orçamento.

Depois falamos sobre a produção cultural brasileira, propriamente. Filmes, música, teatro, literatura. Pasmaceira foi a palavra encontrada pelo ministro para definir este período de vacas magras. Nem “Aquarius” o convenceu.

Por fim, perguntei-lhe de umas cinco ou seis formas diferentes, se não haveria contradição entre o espírito de sua obra cinematográfica e seu comportamento político. Ao que, escutei, “eu separo muito as coisas, apesar de não ser duas pessoas”. Saí do encontro pensando que este talvez devesse ser o dilema também do PSDB, que não sabe se embarca ou desembarca do governo.

Mais tarde percebi, estudando a obra e a trajetória de João, mineiro de Ituiutaba, de fala baixa e cadenciada, que a contradição ou digamos o paradoxo, é essência de suas duas atividades, a política e a artística, e que no fundo, não são mesmo duas personas, mas uma só.

João atuou no governo Franco Montoro, na aurora da redemocratização. Sofreu demais, como tantos outros cineastas, com a extinção da Embrafilme, durante o governo Collor. Ficaria mais de uma década sem filmar. Foi ainda secretário estadual de Cultura, quando formulou e criou a Lei da Cultura do Estado, o ProAC. E presidente do Memorial da América Latina, sob Alckmin.

Por outro lado seu cinema nunca foi afinal, o da militância aguerrida. “Se há um tema que percorre meus filmes, é a idéia da inviabilidade”, já disse o próprio, a respeito de sua obra. “Caí em uma armadilha que eu próprio armei”, disse a este blog o próprio, a respeito de sua situação no Ministério. João está sendo um ótimo protagonista de seus filmes.

FRASES

“Parece que toda a atividade do Ministério nestes seis meses em que estou lá é de tentar reorganizar o próprio Ministério”

“Aos poucos, fui perdendo a esperança de que eu pudesse ter um papel”

“Hoje não há uma força transformadora na cultura brasileira. Eu vejo mais um esforço dos artistas para sobreviver, do que uma realização criativa”

“Os Pontos de Cultura, criados por Gilberto Gil, são o grande problema para quem pegar o MinC hoje”

“Há uma voracidade muito grande, uma volúpia por cargos, pedidos de recursos para bases eleitorais”

“Tem dias em que eu me torno prisioneiro das minhas ideias”

“Achei Aquarius interessante, apesar de não ter feito minha cabeça”

“Quando houve a abertura política, ela não trouxe os elementos de renovação que a gente esperava que acontecesse”

“Em termos de política cultural, o Minc está muito defasado”

“Fiquei impressionado com a degradação. É um poço de problemas, tem coisa pra resolver o dia inteiro”

 

Leia entrevista:

Eu tô parecendo um personagem do filme do Buñuel, que chama “O Anjo Exterminador”. Um grupo de pessoas que se reúne dentro de uma casa, ficam horas lá e depois não acham a porta de saída…

Você está nessa?

Estou mais ou menos assim. Tô pedindo pra sair e a minha exoneração não sai. A princípio, fiquei esperando a nomeação do novo ministro, mas achei que ia demorar uns três dias, uma semana. Até agora, nada…

Mas por que você acha que está acontecendo assim?

A dificuldade de conseguir um nome, né? É impossível fazer uma política cultural com o Ministério desse jeito. Não apenas o corte de 43% no orçamento, que já estava minguado. Não gosto de ver meu nome no meio de uma ciranda de interesses pelo Ministério por partidos políticos.

Mas se você quiser, não consegue sair agora em julho?

Eu posso sair, mas ofereci pro governo de não criar esse buraco no Ministério. Eu tinha a esperança de blindar o Ministério e conseguir avançar uma série de coisas até o final de 2018. Mas fiquei impressionado com a degradação. É um poço de problemas, tem coisa pra resolver o dia inteiro. Isso é antigo já, não foi esse governo que criou essa situação.

Exemplos?

Vinte mil prestações de contas atrasadas! Todo mundo que recebe dinheiro, principalmente da Rouanet, através de convênios, tem que usá-lo e prestar conta. Se você não faz a prestação de contas, imagine um projeto de quinze anos atrás…

Então é a avaliação destas vinte mil prestações de conta que está atrasada?

É. As empresas podem ser inabilitadas, se tiverem as contas rejeitadas. Mas as contas precisam ser analisadas, antes. Este é o passivo de prestações de contas não finalizadas pelo MinC.

Impressionante. Há outros passivos?

Sim. Você acresce a isso coisas graves como R$100 milhões de passivo, principalmente do projeto dos Pontos de Cultura. Esses passivos são projetos para os quais o MinC deveria ter repassado dinheiro e não repassou. Tem muitas queixas dos Pontos de Cultura nos últimos anos, dizendo que não recebiam dinheiro. Eles entravam em pane, ameaçavam fechar, e muitos fecharam.

O que mais você encontrou de degradante?

Várias coisas. Uma grande preocupação minha era revitalizar as instituições culturais importantes e fundamentais do Brasil, como a Cinemateca, a Biblioteca Nacional, a Funarte, o Edifício Capanema. Estavam todos em péssimo estado.

O que é péssimo, em exemplos práticos?

Os prédios estão precisando de obras. O ar-condicionado da BN não funcionava, eu fui lá e estava 39ºC dentro da biblioteca! Como é que pode em um arquivo de livros e documentos históricos? Houve um tempo em que chovia e entrava água pelo teto. Cinemateca Brasileira em situação quase falimentar. O pessoal sabe que eu salvei a Cinemateca, estava em uma situação sem saída. Isso é bastante deprimente no Ministério da Cultura.

Com o Temer as coisas pioraram? Porque foram três ministros, em um ano.

A única coisa com o Temer foi o corte de 43% agora em março, abril.

Deu na coluna da Sonia Racy, que após todos esses cortes no orçamento, o Ministério corre o risco de parar atividades em agosto.

Além do orçamento precário, há o problema financeiro, a liberação dos recursos. Nesse caso  a situação é pior: não ter como pagar todas as contas, serviços, manutenção etc

Total do orçamento é quanto?

Deveria ser 700 milhões, mas com esse corte passa para 400 milhões. É muito pouco, não é nada. É claro que você acresce a isso algumas coisas como, por exemplo, a ANCINE, que tem 1 bilhão de reais. A Lei Rouanet tem mais ou menos 1 bilhão, que também não entram nessa conta. Mas o MinC tem os vinculados, tem o IPHAN, o IBRAM, que são dezenas de museus pelo país inteiro, tem a Biblioteca Nacional, a Cinemateca, a Funarte, Fundação Zumbi dos Palmares.

Como é que está a cultura no Brasil hoje?

Respondo pessoalmente, e não como ministro. Acho que a gente passa por um momento de baixa cultural. Em geral tem poucas ideias, às vezes a máquina funciona, mas é um momento muito difícil. Dá pra entender, porque o país tá com uma dificuldade muito grande. A relação das pessoas com o próprio país é muito crítica, não só de apontar defeitos e exigir soluções. É um desânimo muito grande, um descrédito em tudo, um certo cinismo também. Há um setor médio da sociedade que exerce um certo cinismo, prefere usar a crise para alimentar sua verve cômica, irônica.

Poucas ideias de política cultural ou de repertório?

De repertório, de revelações, do que que a cultura brasileira, o cinema, as artes plásticas estão revelando.

Tem algo que te chama atenção?

Eu vejo mais um esforço pra sobreviver do que uma realização criativa.

Você acha que a gente tá indo pra onde?

Algo que marcou muito a minha juventude era uma esperança imensa de mudança do Brasil. Isso vinha de anos de modernização pelos quais o país estava passando. Com o golpe de 64, houve um sentimento de injustiça enorme em relação a toda efervescência que o Brasil passava até ali. Minha geração acabou politizando todo seu trabalho, pois o objetivo era acabar com a ditadura. Ali não era um momento transformador, era um momento de exercício do que aprendemos. Quando houve a abertura política, ela não trouxe os elementos de renovação que a gente esperava que acontecesse. Isso mostra pra mim que ciclos culturais não acontecem só porque você tem liberdade. Liberdade é fundamental pra você exercitar a sua criatividade, mas tem que ter construção histórica por trás.

Os governos FHC e os do Lula, não criaram alguma condição?

Criaram num certo momento a própria reestruturação do Ministério da Cultura, mas sem que aquilo tenha sido de fato transformador, porque não havia o elemento transformador na sociedade. Hoje não há uma força transformadora na cultura brasileira, não há. O papel da política cultural é conduzir da melhor forma possível para que todo o apoio possível seja dado à produção cultural. Mas a qualidade desta produção não depende do Ministério da Cultura, não depende do governo; depende da sociedade.

Eu queria entender o seu status atual. Você entrou lá há seis meses com o Roberto Freire, ele saiu quando rolou a história da JBS, e você não quis sair.

Não, foi diferente. Eu não queria ir pro Ministério. Quando ele me convidou em dezembro, eu não queria ir. Custei a decidir. Por fim, achei que poderia blindar o Ministério das pressões de dentro do governo, dos partidos, e tentar fazer uma política de restauro da dignidade do Ministério da Cultura e das instituições que dependem dele. Então fui pra Secretaria Executiva, que é uma espécie de miolo funcional do Ministério.

Aos poucos, fui perdendo a esperança de que eu pudesse ter um papel cultural. Quando o Roberto saiu, eu já estava bastante crítico em relação ao Ministério, e ele jogou no meu colo. A ideia era que ninguém saísse até resolverem quem iria pro Ministério.

Qual o clima em Brasília, com esse governo? Como você vive isso?

Olha, existe uma certa pasmaceira, ninguém sabe como vai acabar isso. Não para de acontecer coisas novas e ruins. É como uma bola que tá morro abaixo e tá agregando coisas, e você não sabe quando é que para. Em Brasília, existem muitos funcionários de cargos de confiança, então as pessoas se sentem muito inseguras.

É um pouco infernal ser ministro nessas circunstâncias? Qual seu dia-a-dia?

Você não consegue formular política cultural, não existe discussão sobre isso! Estamos sufocados por problemas, às vezes, de décadas. Então a gente gasta um tempo enorme pra ver como superar, um monte de reuniões, Ministério Público, Tribunal de Contas, contratação de funcionários, planejamento, assim como legislações que precisam de renovação. Parece que toda a atividade do Ministério nestes seis meses em que estou lá é de tentar reorganizar o próprio Ministério.

Na época do Gilberto Gil a gente não tinha essa impressão sobre o Ministério. Ou eu estou errado?

Naquela época, teve uma coisa boa que foi poder falar em política cultural. Momento de mudança, partido novo, cheio de ideias, com quadros novos. Mas você vê que não foi suficiente pra preservar as próprias instituições culturais. Por exemplo, os Pontos de Cultura, criados pelo Gil, são o grande problema pra quem pegar o MinC, porque é uma quantidade de problemas, de passivo, dos que fecharam ou não funcionam, condicionados com convênios, com dinheiro que vai pra prefeitura e pro Estado e que não repassam…

Alguém foi bom ministro?

Eu tenho uma admiração pelo Gil, porque ele foi o que de certa maneira deveria ser um bom ministro, cujo papel é formular coisas. Adoraria poder fazer isso, formular e refletir sobre o momento que está se passando.  Ele exercitou reflexões sobre a política cultural, aproveitando o momento de que havia uma discussão enorme no mundo. Acho que foi um momento bom pra política cultural. A prática acho que já não tenha sido boa.

Para você, é um constrangimento fazer parte deste governo?

É um pouco. Posso dizer que da área da cultura, não tem ninguém que me agrediu, há um respeito e um apoio grande. Mas sempre tem uns amigos que reclamam; já passei por constrangimentos em encontros, com coisas do tipo cartazinhos. Passei por um grande, na entrega do Jabuti, em que fui lá em nome do ministro Roberto Freire, e eles começaram a gritar “golpista, golpista”, e eu não entendi o que era. Acabei passando por uma coisa sem razão. Então às vezes constrange.

Eu era contra a ideia do impeachment, achei que isso iria causar um trauma muito grande na política brasileira, que seria difícil de cicatrizar, e que a oposição estava perdendo a chance de um embate político e ideológico com a sociedade. Houve o impeachment, não houve esse embate, e pra sociedade é tudo igual. No Brasil hoje, ainda não se sabe que país a gente quer.

Um cara que foi do Partido Comunista…

Primeiramente, nós não vivemos um processo de retrocesso institucional ou de mudança de regime, ou perigo político, mesmo com o erro do impeachment. Ninguém ali é muito anjo. Depois dessa troca, haveria este período intermediário até as eleições de 2018, onde o governo passaria por uma dificuldade enorme para tentar colocar tudo em ordem para um próximo governo.

Você viveu um conflito de consciência?

Claro que sim, por trabalhar com pessoas com as quais não me afino. Mas isso era contrabalançado com o fato de tanto governo quanto oposição estarem na mesma situação. Onde você estivesse, você estaria lidando com políticos completamente comprometidos. Há uma voracidade muito grande, uma volúpia por cargos, pedidos de recursos para bases eleitorais. Por exemplo, pedido para apoiar um evento cultural não-sei-onde na base eleitoral de tal político… eu reajo muito a isso, mas há uma pressão violenta para que aconteça.

Em termos de política cultural, o MinC está muito defasado?

Tá muito. A Rouanet é bastante problemática. Na verdade, tá faltando um pensamento moderno sobre política cultural. O único lugar onde tem um exercício de pensar política cultural permanente é na ANCINE, mas ela já foi pensada e proposta pelos próprios cineastas em 1990.

Foi na Ancine que pegou, não?

No caso da ANCINE, ficou muito comigo. E fiz uma coisa que faltava, que era conversar com o setor. Passei a propor reuniões com presença maior de realizadores, e isso acabou criando um consenso entre o setor. Desse movimento, saiu a indicação para a presidência da ANCINE, que eu adotei. E do Palácio saiu outro, do Sergio Sá Leitão. Criou aquele impasse.

Ficou acordado então que o MinC indicaria a presidente da ANCINE, enquanto que o Palácio indicaria o diretor. O nome de consenso que eu tinha costurado era o da Débora Ivanov. Ela tem um apoio enorme. Eu postei a indicação dela, como ministro, dentro do sistema. Não vinha a resposta, e ao mesmo tempo vinha a pressão para que eu retirasse a indicação, para que o Sergio assumisse. Eu me recusei, e não tirei o nome. Criou-se um impasse com o governo.

Você vive um drama de consciência por ter sido militante e fazer parte deste governo?

Sim, porque você é acusado de estar participando de um governo ilícito. Mas não é o que vejo lá. Eu era contra o impeachment, mas ele está previsto na Constituição. Muita gente não tem essa reflexão, elas acham que “se você está no governo, então você é golpista”.  Confesso que é muito constrangedor, incomoda. Porque você trabalha num certo limite de dúvida do que a gente tá fazendo. Eu trabalhei no Ministério sempre me permitindo ter dúvidas, mas agindo como eu achava que era possível.

Eu separo muito as coisas, apesar de não ser duas pessoas (risos). Eu separo a minha atividade política, que tem uma característica diferente da minha atividade como cineasta. Fazendo filme, eu estou me questionando, revelando contradições da sociedade, da vida, das ideias das pessoas. Minhas preocupações políticas invadiam minha vocação como cineasta, mas eu prezava mais meu feeling do que as ideias políticas, mesmo que eles entrassem em choque. Meu cinema tem muita ligação com o social, as lutas sociais, a repressão, o indivíduo sobre isso, mas dá pra ver que os personagens estão sempre se embaralhando com suas propostas, e geralmente perdem.

Sentimentos correndo de um lado e ideia de outro.

Eu acho que ao trabalhar com sentimentos, feeling, as minhas ideias políticas são muito importantes, pois me permitem questionar a realidade. Está desde meu primeiro filme, “Liberdade de Imprensa”. O Jean-Claude (Bernardet) disse que eu não filmava a realidade tal como ela parecia, que a realidade como tal é um fetiche. Eu quero saber o que está oculto lá, e no que as pessoas estão errando. Isso foi grande parte do meu trabalho como cineasta, criar uma situação para revelar o que estava oculto.

O que você está vivendo hoje, você não seria um personagem de um filme seu?

Não sei. Tem dias em que eu me torno prisioneiro das minhas ideias. Mas eu sou muito crítico. tenho mais devoção a esse meu espírito crítico do que a qualquer “politicamente correto”, qualquer certeza, ideologia, partido político.

Você assistiu a Aquarius? O que você achou?

Ah, não sei… ele é interessante, apesar de não ter feito minha cabeça. Mas é um bom filme.

É que ele se tornou um pouco icônico, né?

Pois é, esse lado ficou acima do filme. É difícil de assistir a ele. Eu queria deixar passar um tempo. A sociedade brasileira tá dividida em dois, e o filme ficou marcado pela posição de um lado. Então é muito difícil de ver sem isenção. Daqui a alguns anos, eu gostaria de revê-lo.

O grande drama brasileiro foi ter criado uma cisão radical de dois pensamentos políticos que correspondem à visão de Estado que a gente quer viver, e não há pontes entre eles! E eles são confusos. O pensamento de uma certa esquerda não está muito claro aonde vai chegar, e nem o outro, da social democracia, uma corrente mais liberal, sabe onde vai chegar. São pensamentos sem ideias que se comuniquem, e que poderiam somar.

Mas você gostou do Aquarius no final das contas?

Não gostei muito, mas é um bom filme. Eu gosto do filme anterior dele, “O Som ao Redor”. O que me incomodou com o filme foi isso, de não conseguir vê-lo como eu gostaria de ver. Ficou muito marcado.

Foi este governo que propôs extinguir o Ministério, né?

Isso é mania da política brasileira, quando uma instituição tá com problema, joga fora a instituição. Parece que é o mais fácil, e é sempre um desastre. Foi a mesma coisa quando o Collor fechou a EMBRAFILME. Ela foi fechada porque teve êxito, e o Estado brasileiro não estava muito afim dessa tutela. A Embrafilme foi ficando defasada, e aí acabou-se com ela. E isso arrasou o cinema brasileiro.

Estamos falando de cinema e política, afinal. Exercer um cargo num governo com o qual você não tem alinhamento, é o que?

Olha, eu não gosto da política cultural alinhada que era feita antes. O risco que você corre é dela ser uma corrente, ser um meio de transmissão político. Eu não gosto disso, pois tenho uma visão apartidária da política cultural, e tenho horror à dependência do Estado. Vão dizer que eu sou liberal, mas eu não sou porque penso diferente. Acho que o Estado deve ajudar o desenvolvimento da cultura, mas que apareça muito pouco, e não crie dependência.

Os jantares que a Paula Lavigne vem organizando, em mobilização contra este governo… como os interpreta?

Acho que há uma luta por hegemonia cultural, porque não há uma vanguarda clara no Brasil. Na música, ainda se tem o Chico, o Caetano, o Gil, coisas lá dos anos 60. Do cinema, ainda tem um cinema que surgiu lá nos anos 60, o Cacá, o Jabor de certa maneira, eu. Agora esta vanguarda está às voltas com o mercado.

O que é o inconsciente coletivo pra você?

Eu não sei dizer. Se a gente for fazer um retrato da sociedade brasileira hoje, tem uma camada bastante popular que depende do Estado em coisas de necessidade primeira, uma dependência de absoluta sobrevivência, nada criativa, como saúde e determinação do nível salarial. Tem outra camada social de classe média, que foi para universidade, que tem necessidade de expressão, e essa não faz ideia do que é a outra. Ela só pensa nela, e faz política voltada para si. Essa parcela está vendo o país desmoronar, e esse setor depende fundamentalmente do Estado; não para suas coisas primárias, mas elas precisam de dinheiro para realizar seus pensamentos. E quem circula na área de poder é essa segunda. A questão cultural no Brasil está ligada a essa segunda camada, que não é rica mas que teve muito acesso aos bens culturais. E enxergou na área cultural uma profissão. Na minha época, fazer cinema era uma paixão, fizesse dinheiro ou não, passasse apertado ou não. Hoje mudou.

Você tem alguma ideia de um lugar de saída para o Brasil?

Acho que O Anjo Exterminador também serve para a situação do Brasil. O país entrou numa situação que não acha o lugar de saída.  O que que nós queremos? Um estado fortemente social? Um estado que se desenvolva, mais liberal?

Se você fosse filmar o momento político de hoje, como você filmaria?

Eu faria o que costumava fazer muito na época em que dirigi o Memorial da América Latina. Saía do gabinete e ia pro metrô, ficar olhando as pessoas, que pareciam bem arrumadas, mulheres com crianças; pessoas que eu imaginava trabalharem como faxineiras, ou caixas de supermercado, e eu ficava imaginando aquelas pessoas chegando em casa, o cuidado que elas teriam com suas casas, se moravam numa casa simples. Aquilo é o oposto do que a gente vê todo dia no Facebook, nos jornais, que é um círculo ideológico que tem muito a ver com classe social.

Eu estaria mais interessado em filmar o dia-a-dia destas pessoas no metrô, e contrapor com a loucura deste outro universo, cheio de disputas, radicalizações. Acho que seria uma boa imagem do que acontece com o Brasil hoje.

 

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