Míriam Leitão: As tragédias e o povo brasileiro

Com bravura, o povo do Nordeste tem acudido suas praias e resgatado o litoral. A dedicação dos voluntários comove e assusta pelos riscos que correm.
Foto: Diego Nigro/SEI
Foto: Diego Nigro/SEI

Com bravura, o povo do Nordeste tem acudido suas praias e resgatado o litoral. A dedicação dos voluntários comove e assusta pelos riscos que correm

Que brava gente é esta que vai para as praias como se fosse para a guerra e luta com as mãos contra o ataque de um óleo espesso e grudento e tóxico. E limpa tudo o que pode até ver a areia limpa, e volta no dia seguinte disposta a novas batalhas porque mais sujeira pode chegar do mar. O mar que normalmente traz a água boa do banho, o peixe, a onda do surfista, o ganho do jangadeiro, do pescador, do dono da pousada e esse horizonte aberto que alonga e descansa o olhar.

Quando o pior aconteceu, e o petróleo começou a desembarcar em ondas sucessivas em 238 praias, em 2.250 quilômetros do litoral, quem primeiro acudiu o Nordeste foi seu povo. O governo tardou, se confundiu, errou, não teve a real dimensão da gravidade do caso. O ministro do Meio Ambiente, como sempre, fugiu da verdade. Ele parece não conviver bem com ela. No máximo aceita uma meia verdade, um fato editado, um número mal contado. Sua predileção é pela procura de inimigos imaginários. É intenso o seu esforço para desfazer a razão do cargo que imerecidamente ocupa.

O país passou os últimos dias vendo em todos os jornais, telejornais, revistas, os relatos, as imagens e as entrevistas com inúmeras pessoas que estão espalhadas em todas as praias, trabalhando sem remuneração, sem cargo, sem adicional, sem proteção, arrancando o mal que se espalha, impregna, gruda, mata a fauna, sufoca a natureza. São os perigosos hidrocarbonetos, energia fóssil, da qual o mundo talvez um dia se livre, se não for tarde demais.

É inevitável ter sentimentos conflitantes diante dessas cenas dos brasileiros tirando as suas praias das garras do petróleo. Fica-se comovido com a devoção dos voluntários e ao mesmo tempo com medo do que possa acontecer a eles pelo efeito do contato com material tóxico a que estão se expondo por amor à terra.

Essa é a terceira tragédia ambiental que atinge o Brasil apenas em 2019. Houve Brumadinho abrindo a temporada de dores, com seus milhões de metros cúbicos de rejeitos soterrando funcionários e moradores. Os bombeiros afundaram na lama e arrancaram de lá os corpos para que as famílias enterrassem seus mortos. Foram infatigáveis, foram indescritíveis, foram além do limite do possível para atenuar as aflições de quem perdeu tanto pelo crime cometido por uma empresa reincidente. O motivo da tragédia foi o descuido com o meio ambiente, a ganância de esgotar o minério das entranhas de Minas, sem entregar aos mineiros sequer o investimento que os protegesse da morte. Os erros se acumularam por anos, décadas, de fiscalização errada, de incompetência, de uma visão predatória da mineração. A mesma Vale que soterrou o Rio Doce, entupiu as barragens que explodiram sobre Brumadinho.

O fogo ardeu na Amazônia destruindo quilômetros e quilômetros de floresta. As chamas seguiram o rastro do desmatamento como sempre fizeram. Já se conhecem os passos desse crime. O erro desta vez foi o governo emitir os sinais errados que os criminosos entenderam como licença para desmatar e queimar. O governo primeiro ignorou, em seguida negou o problema, depois atacou os cientistas do Inpe, inventou culpados, e por fim despachou as Forças Armadas para apagar o incêndio. Dentro de algumas terras indígenas, são os próprios indígenas que têm feito patrulha e tentado espantar os invasores.

O desmonte dos órgãos ambientais, a falta de estrutura, o assédio que os servidores viveram, a troca atabalhoada das chefias, os órgãos que ficaram acéfalos, as portarias paralisantes, tudo teve reflexo em cada tragédia ambiental que o Brasil tem vivido. Por toda a costa nordestina, quem esteve presente desde o primeiro momento foram os voluntários, inúmeros deles. Seu exemplo foi tão eloquente que o governo teve que correr e mostrar serviço.

Tem sido um tempo de descrer das virtudes do país, por isso o que os nordestinos resgatam é mais do que imaginam. Não são apenas as areias, as tartarugas, as aves, os manguezais, as águas do mar. Resgatam a autoestima do país, a confiança de que podemos nos tirar das dificuldades, de que o país pode dar certo, mesmo que seja longa e penosa a crise que se abateu sobre nós. Pode fazer muito um país onde o povo é capaz de travar batalhas para salvar suas praias do afogamento.

Privacy Preference Center