Revista Política Democrática || André Amado: Calvino e a erudição

Para André Amado, o escritor italiano Italo Calvino teve a ousadia de declarar que “a literatura (e talvez só a literatura) pode criar anticorpos que neutralizam a expansão da peste da linguagem".
Italo Calvino

Para André Amado, o escritor italiano Italo Calvino teve a ousadia de declarar que “a literatura (e talvez só a literatura) pode criar anticorpos que neutralizam a expansão da peste da linguagem”

Já deverão ter notado que não sou crítico literário. A razão principal, por mais que me doa reconhecer, é que me faltam credenciais, o que, em bom português, quer dizer competência. Por isso, conformo-me em abrir aspas e convidar a escrever nestas páginas autores do quilate de um Flaubert, Umberto Eco, Vargas Llosa e, desta vez, Italo Calvino, um dos mais célebres escritores italianos, que teve a ousadia de declarar que “a literatura (e talvez só a literatura) pode criar anticorpos que neutralizam a expansão da peste da linguagem”.[1]

Dá até vontade de traduzir “linguagem” por “erudição”, para mantermos a ironia típica de muitas reflexões de Calvino. Mas, se o fizéssemos, incorreríamos em imensa injustiça com outra de suas obras, Por que ler os clássicos [2], em que se consagra o mais profundo e íntimo conhecimento dos autores selecionados, o que, em uma palavra, se chama erudição, no bom sentido do conceito.

A lista de escritores é longuíssima, embora cada texto se concentre em transmitir o que de fato interessa em literatura. Lá estão Homero, Cyrano, Defoe, Voltaire, Stendhal, Balzac, Dickens, Flaubert, Tolstoi, Mark Twain, Henry James, Stevenson, Conrad, Hemingway e Borges. Para os que se autoproclamam iniciados no tema, encontrarão também Xenofonte, Ovídio, Ariosto, Galileu, Pasternak e Pavese. E, que me perdoem os mais letrados, mas a lista inclui ainda escritores de quem apenas ouvi falar, se tanto, como Plínio, Nezami, Cardono, Ortes, Gadda, Montale e Queneau.

É fascinante como Calvino aborda cada um. Com relação a Homero, claro, o foco está na Odisseia (mas com que ângulos inexplorados!).

Defoe desfila com seu célebre Robinson Crusoe, tanto quanto Stendhal, com Cartuxa de Parma. Mas Dickens entra no livro com Our Mutual Friend; Flaubert, com Trois contes; Tolstoi, com Dois Hussardos; Stevenson, com o O pavilhão das dunas, e assim por diante. Por intermédio dessas obras, que sem dúvida não são as mais conhecidas dos escritores, Calvino supera o desafio e as transforma em peças maestras, magia que estende à produção literária dos demais integrantes de sua lista, a ponto de nos produzir certo constrangimento por nunca os termos visitado.

De alguma maneira, no entanto, a despeito da coleção das críticas finas e envolventes com que nos brinda na maior parte do livro, é na introdução de somente oito páginas que Calvino revela o sentido da pergunta estampada no título do livro e, para isso, desfia algumas propostas (na verdade, 14) de definição do que considera “clássico”, das quais destaco as seguintes:

– Os clássicos são aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer “Estou relendo…” e nunca “estou lendo…” (p. 9);

– Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual (p. 10);

– Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer (p. 11);

– Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato se revelam novos, inesperados, inéditos (p. 12); e

– É clássico aquilo que tende a relegar as atualidades à posição de barulhos de fundo, mas, ao mesmo tempo, não pode prescindir desse barulho de fundo (p. 15).

Calvino acrescenta comentários tópícos, ao lado dessas propostas, como, por exemplo: “o clássico não necessariamente nos ensina algo que não sabíamos; às vezes, descobrimos nele algo que sempre soubéramos…, mas desconhecíamos que ele o dissera primeiro… Esta é a surpresa que dá muita satisfação”. E, de repente, o escritor italiano se cansa de destrinchar o óbvio e encerra a introdução bem a seu estilo: “a única razão que se pode apresentar é que ler os clássicos é melhor do que não os ler”.

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[1] Seis propuestas para el próximo milênio, Ediciones Siruela, Madrid, 9ª edición, 2010, p. 68.
[2] Perché leggere i classici (2002). Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

 

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