Falar do procurador, em certa medida, é ser atraído por seu abismo de sentido
“Tem que manter isso, viu?” Foi essa frase, plantada no processo contra o presidente da República, a pólvora do tiro real dado pelo procurador. O papo-furado do outro tiro no ministro do Supremo só Freud e a demagogia calculada explicam. As coisas estão assim. O privilegiado é um confortador de si mesmo. Usufrui com requinte o poder, quando o perde não sabe se comportar e escoa no País resíduos da alma. Só por falar já é um risco para os tolos interessados na imitação dos piores.
O verniz de justo se desfaz e revela que se alimenta dos que acusa. São os santos de vidro quebrado que metem medo, deixando lascas por aí. É impressionante como normalmente homens de paixões frias prosperam no meio das conspirações políticas. O poder não conhece ateus, todos o veneram.
Um ministro tenaz e impopular, alvo de fúria alegórica de um homicida ficcional, um presidente interino e reformador, a vítima política atingida, se encontram no rito secreto de um procurador mal-intencionado, fantasiado de sacerdote do sadomasoquismo da justiça. Nenhum pudor ou aviltamento na consciência. Talvez, atribuindo-se papel importante para alguma causa, tenha se sentido figurante mal pago.
O ostracismo impulsionou sua fragilidade e fez despontar a imagem que projeta: ele é sua própria causa e para compartilhar sem culpa esse horror o revela como crime passional. Os infelizes, quando fazem mal aos outros, só precisam de si mesmos para se ferirem. E, como em romance policial, quem volta ao mesmo caminho é sempre para voltar a ele. Claro que há muito crime de colarinho-branco, mas o desassombro impune do procurador passou da conta. Induzir à violência por imitação, forjar a derrubada de um presidente, expressar o direito de matar – o poder como êxtase, exercê-lo além do ponto, até a obscenidade.
É no mundo dos que se sentem donos do mundo que se compreende o homem em sua totalidade. Quantos eram uns e se tornaram outros com poder! E muitos procuradores, como as crianças para as religiões, decidiram representar para a sociedade o estado de graça original. Mesmo errados, não contabilizam seus atos como maus. Objetos de culto, beneficiam-se da confusão que é a ideia da justiça num país sem valores universais e dominado pelo apetite doentio da publicidade do poder.
Envergonhado, quer envergonhar e, sem perder a ambição de ser santo, informa que consumado o ato dirigiria a sevícia contra si. O autossuplício de quem se sente deus para definir também sua sentença, supondo suprimir o dano. É das meditações de um imperador romano o alerta: “Nada mais digno de pena do que aquele que a tudo faz a volta completa, investigando o âmago da terra e perquirindo, através de ilações, a alma do próximo”.
Não é o primeiro da longa lista de sofrimentos por que passa o nosso país. Podemos chamá-lo de qualquer coisa, classificá-lo, fazer do seu caso objeto de conversa ruim que torna mais áspera a superfície das paredes das casas de família e alimenta o glamour podre dos justiceiros. A política brasileira de uns tempos para cá permanece irregistrada na literatura não engajada, nos filmes e músicas de amor. Talvez porque quem quiser entender o que está acontecendo recebe antes uma avalanche de razões e relatos meio embusteiros que servem como veneno para impulsionar essa espiral sem freio que sobe como mola. É uma luta sem consolação ver o País sempre se dividir quando um fato mostra que não é virtuoso algum guardião da virtude. Verdadeiro flagelo a Justiça brasileira ficar presa na gangorra dessa teia de aranha.
O ambiente civilizado do bom humor e do humanismo desapareceu. O amor quebrado domina tudo. Todos são obrigados a viver o malfeito dos outros como se fôssemos a síntese do erro de nossas autoridades, equivalendo-se a todas elas, tendo de viver a vida confusa de cada um. A reação é pior: virou onda considerar o Brasil um lugar incapaz de se aturar.
Não pense assim, nem suponha que mudar de país vai ajudar. O mal se agrava quando tudo cai no campo da significação política e perdemos a capacidade de analisar sua especificidade. O duopólio esquerda e direita tem-nos levado a essa sobrepolitização de tudo sem espaço para a consciência se abrir a outras explanações, fechada somente no que é exterior a nós. A fúria é até justa, pois em repartições onde ocorrem coisas vulgares grandões autoritários não passam de homenzinhos deseducados. A mesma falta de limites se vê em ambientes ornamentados por crucifixo, a Bíblia, um livro de orações.
A imagem de um poderoso com poder de acusar, julgar ou prender sempre foi impossível olhar sem chorar, ou rir. Os bons, e são muitos, falam por si. O indiciado, o réu, o prisioneiro, esse é contabilizado como mais um dos bens do carcereiro. As decisões das autoridades penais são verdadeiras doenças verbais, inventários morais para serem lidos pela televisão. Muitas vezes é o ódio que os anima, não a busca da verdade. E quando a verdade desemboca na mentira usada para esconder a falta de provas ou nenhuma investigação científica sobre o delito, é impossível deter essa ciranda de erros.
Encontrar um culpado não tem sido, entre nós, esclarecer um crime. O que ecoa da cabeça de um obstinado juiz, procurador ou delegado funciona como um alucinógeno. E, clichê dos clichês, não é errado pensar que depois de fazer o mal a preocupação do injusto seja comer bem e dormir sem ser perturbado. O crime no Brasil é um prato cheio também para extravagantes legais e tratado como um bufê de palácio onde muitos se alimentam do que dizem fazer-lhes mal.
Nós não somos homogêneos e a facilidade e a rapidez com que hoje sabemos dos outros não devem fazer-nos pensar que o mundo é inútil. Falar do procurador, em certa medida, é ser atraído por seu abismo de sentido, esse estereótipo da negatividade que domina o universo mental brasileiro. Sem raiva, nem simpatia, não foi o que desejei.
*Sociólogo.