Em reta final, Senado aprova texto que altera aposentadoria dos setores público e privado. Pontos complicados, como inclusão de Estados e municípios, serão tratado em PEC paralela
O Senado Federal aprovou nesta terça-feira em primeiro turno a reforma da Previdência. Por 56 votos a 19, os senadores referendaram um Projeto de Emenda a Constituição (PEC) que prevê uma série de mudanças no sistema de aposentadorias e de pensões do setor público e privado. O relatório do senador Tasso Jereissati (PSDB) manteve o conteúdo principal aprovado por deputados no início de agosto para garantir sua promulgação imediatamente depois da votação em segundo turno na Casa. A condição para a aprovação do texto-base foi a criação da chamada PEC Paralela, que abriga pontos divergentes que saíram da PEC principal.
Seja como for, uma das mais ambiciosas reformas prometida por Jair Bolsonaro e ansiadas pelos investidores do mercado financeiro está a apenas uma votação — prevista para acontecer até 15 de outubro — para virar lei. O texto aprovado nesta terça tem uma modificação relevante a respeito às pensões: ao contrário do que determinou a Câmara, uma viúva não poderá receber menos de um salário mínimo, hoje em 998 reais. Com isso, a economia aos cofres públicos será de 876 bilhões de reais em dez anos, ao invés dos mais de 1 trilhão que o Governo de Jair Bolsonaro previa ao enviar a proposta original ao Parlamento.
A oposição ao Planalto passou meses fazendo campanha contra a reforma e acusando as mudanças de prejudicarem preferencialmente os mais pobres. Até que ponto têm razão em suas críticas? Para entender o quadro, o EL PAÍS conversou com quatro economistas do campo progressista que estão engajados no debate sobre o projeto da reforma da Previdência: Nelson Barbosa, ex-ministro da Fazenda do Governo Dilma Rousseff e professor da FGV e da UnB; Marcelo Medeiros, especialista em desigualdade e pesquisador do IPEA; Nelson Marconi, coordenador do programa de Governo de Ciro Gomes e professor da FGV; e Eduardo Fagnani, professor do Instituto de Economia da Unicamp.
Os quatro possuem opiniões distintas sobre a reforma e fazem diferentes graus de críticas a ela. Mas coincidem em dizer que os pontos considerados mais problemáticos foram retirados e os direitos mais básicos foram mantidos. As mudanças no Benefício de Prestação Continuada (BPC) e na aposentadoria rural foram deixados de lado, enquanto que permaneceu o piso de um salário mínimo de aposentadoria. Isso significa que tanto os trabalhadores rurais como aqueles trabalhadores urbanos que ganham um salário mínimo — 63% de todos os aposentados do regime geral — foram preservados. De mais problemático, do ponto de vista da distribuição dos sacrifícios, está a concessão feita a categorias como policiais federais, por exemplo. Também está pendente a reforma para os militares.
Além disso, as mudanças nas regras do abono salarial, um 14º salário pago pelo Estado a trabalhadores que recebem até dois salários mínimos, foram deixadas de lado pelos senadores. Já o plano de implementar um regime de capitalização, em que cada trabalhador passa a ter uma conta individual, foi retirado do texto-base ainda na Câmara. Por fim, o tempo de contribuição mínimo para se aposentar continua sendo de 15 anos, tanto para mulheres como para homens — no caso destes últimos, os que entram no sistema agora terão que contribuir um mínimo de 20 anos. Apesar da campanha contrária de parlamentares à esquerda, os economistas consultados também concordam com a extinção da aposentadoria por tempo de contribuição, mantendo apenas o regime de idade mínima — os dois modelos coexistem atualmente.
Como pano de fundo está a explosão do gasto do Governo Federal com aposentadorias do INSS, servidores federais e militares. Dos mais de 767 bilhões de reais previstos em despesas previdenciárias em 2019, mais de 300 bilhões são recursos do Tesouro Nacional — o chamado déficit — enquanto o restante é proveniente da contribuição de trabalhadores e empregadores. Em 2008, esse déficit era de 77 bilhões. O envelhecimento da população somado à antigos privilégios do funcionalismo estão entre os fatores que causaram a explosão das despesas, coincidindo nos últimos anos com a crise econômica, desemprego e queda na arrecadação.
Quem mais contribui para a economia gerada
As lideranças da esquerda vêm argumentando que de cada 100 reais de sacrifício, ou seja, que saem do bolso dos contribuintes, mais de 80 reais serão cobrados de quem ganha até 2.000 reais. As principais queixas dizem respeito às mudanças aplicadas ao regime geral do INSS, responsável pelo benefício dado ao setor privado —isto é, a imensa maioria da população.
Entre as alterações que atingem a maior faixa de trabalhadores estão o fim da aposentadoria por tempo de contribuição e o estabelecimento de uma idade mínima para todos, de 65 anos para homens e 62 para mulheres; a mudança na base de cálculo da aposentadoria, que passa a considerar todos os salários ao invés dos 80% maiores, como acontece hoje; e a necessidade de que mulheres contribuam por 35 anos e homens 40 para que consigam aposentadoria integral, cinco anos a mais que atualmente, afetando aqueles que ganham entre 1,5 e 2 salários mínimos.
A afirmação de lideranças progressistas de que o grosso da economia virá dos trabalhadores que ganham até dois salários mínimos pode ser considerada uma meia verdade. “Qualquer economia grande que você queira fazer vai ter que afetar a massa das pessoas de renda mais baixa. É a massa dos beneficiários”, explica Medeiros. Barbosa segue na mesma linha: “No agregado a maior economia vem do regime geral do INSS porque é o maior programa. Mas o correto é medir o impacto per capita da reforma. Quando você olha para o impacto em cada pessoa, então a maior economia é no setor público”, afirma. Segundo os cálculos feitos pelo economista Carlos Góes e publicados na Folha de S. Paulo, aposentados com até dois salários mínimos contribuirão, cada um, com 11.519 reais ao longo de 10 anos para a economia gerada com a reforma da previdência. Já os aposentados do setor público contribuirão com 75.694 reais.
Contudo, Marconi chama atenção para o fato de que, mesmo o ajuste per capita sendo maior para quem ganha mais, qualquer impacto na renda de quem ganha menos é muito mais sentido. Isto é, o real que o mais pobre economiza impacta mais a sua vida que o real economizado pelo mais rico. “Está correto colocar idade mínima e manter o tempo de contribuição mínimo em 15 anos. O problema é que você já não vai receber o valor da aposentadoria integral com esse tempo mínimo, mas sim 60%. E a base de cálculo da aposentadoria também muda e passa a considerar todas as remunerações”, explica. Outros economistas que se especializaram na questão previdenciária vêm apontando, contudo, que a imensa maioria das aposentadorias integrais já correspondem a um salário mínimo, que é o valor do piso do INSS. Marconi rebate: “Ainda assim há um número considerável de pessoas que ganham acima disso. Só em 2017, 290.000 pessoas se aposentaram ganhando entre 1 e 2 salários”.
O resultado, explicam tanto Marconi como Medeiros, é que mais pessoas passarão a ganhar o piso de um salário mínimo. “O custo mais alto é para quem está ganhando acima de 1,5 salários. Para essas pessoas a perda vai ser mais forte”, afirma Medeiros. A afirmação parece coincidir com os cálculos publicados por Góes: se a economia per capita gerada com quem ganha até dois salários é consideravelmente menor, a poupança com aqueles que ganham logo acima disso, isto é, mais de dois salários mínimos, salta para 60.463 reais por pessoa.
Idade mínima e tempo de contribuição
Aumentará então a desigualdade social? “Quando a renda é muito concentrada, você vai combater a desigualdade mudando os benefícios dos mais ricos, coisa que não é muito assunto da previdência”, explica Medeiros. “A pergunta que deve ser feita é: em que medida essa reforma vai ser paga por gente de renda mais baixa? Nesse sentido, a reforma possui aspectos progressivos e outros regressivos”, aponta. Entre os pontos que ele considera igualitário estão a manutenção do piso de um salário mínimo e a implementação da idade mínima, fortemente combatida pela esquerda, de 65 anos para homens e 62 para mulheres. Hoje, apenas os que possuem salários mais altos e emprego estável ao longo da vida conseguem se aposentar com mais de 30 anos de contribuição e idade indefinida, enquanto os mais pobres — a maioria dos beneficiários do INSS — já se aposentam por idade.
Entre outras mudanças consideradas progressivas estão as alíquotas de contribuição previdenciária. Os servidores públicos contratados através de concurso público até 2012 deverão pagar, antes e depois da aposentadoria, alíquotas que variam de 7,5% a 22%, ao invés dos atuais 11% para todas as faixas salariais. Já no regime geral as alíquotas vão variar de 7,5% a 14%, ao invés dos atuais 8% a 11%. “As alíquotas progressivas são boa notícia, mas são menos progressivas do que parecem. Isso porque as alíquotas mais altas pagas à Previdência implicam descontos mais altos no Imposto de Renda, que é calculado sobre a renda bruta menos as contribuições previdenciárias”, explica Medeiros. “Acaba que o Imposto de Renda passa a financiar uma parte da Previdência”.
Nelson Barbosa acredita que a reforma avança no caminho correto e corrige várias distorções. Mas ele acredita que outras estão sendo criadas. Uma delas tem a ver com o tempo de contribuição. De acordo com as novas regras aprovadas pela Câmara, os trabalhadores que atingirem a idade mínima e se aposentarem com o mínimo de 15 anos de contribuição receberão 60% da média de suas remunerações ao longo da vida. Para conseguir o valor integral, isto é, os 100% da média de salários que ganhou ao longo da vida, será preciso trabalhar o mínimo de 35 (mulheres) e 40 anos (homens). “A nova regra diz que você ganha 2% por cada ano adicional de trabalho. Por essa regra os homens chegariam com 100% aos 35 anos, não 40. Faltou uma negociação mais sofisticada, porque você está considerando 15 anos para o acesso à aposentadoria e 20 anos para o cálculo. Isso vai gerar contestação judicial lá na frente”. O economista também defende um sistema de bônus para as pessoas que queiram e possam trabalhar mais. “O tempo para receber o valor integral deve permanecer em 35 anos. Depois disso, você ganharia um adicional. Isso estimula as pessoas que podem e querem trabalhar 37 ou 40 anos”.
O que a esquerda poderia ter proposto
Além de todas as questões expostas, a esquerda poderia ter proposto alternativas à reforma apresentada? Marconi defende o projeto apresentado por Ciro Gomes no ano passado, baseado em três pilares: uma renda mínima universal de um salário mínimo para idosos; um sistema solidário de repartição, como o que funciona hoje, com uma idade mínima a ser reajustada automaticamente de tempos em tempos e um teto do INSS pouco menor – entre 4.500 e 5.000 reais –; e um sistema de capitalização público bancado por trabalhadores e empregadores. “Tem também a questão da acumulação de aposentadorias em cargos, colocaríamos um limite para isso. E reveríamos isenções para o Simples Nacional, ruralistas…”, afirma.
Já Barbosa considera que a esquerda errou em combater a idade mínima. Ele também defendia as mudanças no abono salarial, muito impopulares. O Senado acabou mantendo o benefício para pessoas que ganham até 2.000 reais, ao invés do teto de 1.364,43 reais aprovado anteriormente pelos deputados. “É um benefício criado na época da ditadura, quando o salário mínimo valia bem menos e ainda não havia seguro desemprego, BPC ou Bolsa Família. É preferível usar parte desse dinheiro do abono para criar novos empregos. O problema é que existe uma desconfiança e nada garante que o Governo usaria para isso”, argumenta.
Assim, “ao invés de defender uma realidade que não existe mais”, o campo progressista deveria abrir novos caminhos e inserir novos temas no debate. Um deles diz respeito a uma renda mínima universal para idosos. Ao chegar a determinada idade, todos teriam direito a ganhar um benefício mínimo, que deveria ser enquadrado como assistência social. Apesar da complexidade e dos limites fiscais atuais, Barbosa acredita se tratar de uma solução permanente e que resolveria de uma vez qualquer debate sobre o BPC e aposentadoria rural. “Mas então significa que vou dar um benefício para o Lemann [bilionário dono da Ambev]? Não. Se uma pessoa de alta renda tem acesso a esse benefício, a gente compensa pelo Imposto de Renda, que deve ser mais progressivo. No mundo da inteligência artificial, um sistema integrado de controle e coordenação dos benefícios está ao alcance do governo”, explica. Outra possibilidade, acrescenta, seria estender esse benefício para crianças de zero a 15 anos, nos moldes da proposta de Tabata Amaral e Filipe Rigoni.
Para que a reforma fosse mais progressiva, Marcelo Medeiros sugere alterar a estrutura de desconto no valor da aposentadoria. “Com a reforma, ela é basicamente linear. Todo mundo se aposenta com 60% do salário e depois adiciona 2% por ano a mais contribuindo. Mas essa estrutura é regressiva porque aqueles que contribuirão mais tempo são também aqueles que possuem renda mais alta. Então, na prática, eles não vão chegar a perder todos os 40% do salário”, explica. Uma possibilidade é que as alíquotas fossem diferenciadas, ou seja, de acordo com o que cada um venha a receber de aposentadoria e com um desconto menor sobre o primeiro salário mínimo, segundo explica. “Mas teria que ver se é viável. Não fiz os cálculos e não sei quanto custaria”, admite.
Já Fagnani recorda que o regime geral passou por alterações nos últimos anos que desestimulam a aposentadoria precoce. Apesar de também ser a favor de uma idade mínima obrigatória para todos, diz que os problemas do setor privado são mais pontuais e que os principais já foram equacionados. Também lembra que Governo Lula realizou uma reforma do setor público em 2003 que soluciona seus problemas fiscais em longo prazo. Mais crítico à reforma enviada pelo Governo Bolsonaro, o professor da Unicamp acaba de lançar o livro Previdência: o debate desonesto. “O pessoal trata a Previdência como uma entidade única, um sistema único. São realidades e especificidades muito marcadas. Você não pode usar o argumento do sujeito que entrou no serviço público em 1980 e se aposentou com paridade e integralidade para fazer uma reforma que visa a combater privilégios em que a maior economia vem do regime geral”. Ele é a favor de tratar cada problema e distorção separadamente, ao invés de colocar tudo em um grande pacote de reforma. “Isso é algo intencionalmente feito para confundir”, argumenta.
Distorções e o que ficou de lado
Entre os aspectos mais negativos e regressivos da reforma, Medeiros, Barbosa e Marconi apontam para os benefícios aprovados para policiais federais e rodoviários. As regras mais brandas para essas categorias foram patrocinadas pelo Governo Bolsonaro durante a votação dos destaques na Câmara, mas contou também com o apoio dos deputados da esquerda. “Eles tem rendas mais altas, vão poder se aposentar muito mais cedo e isso tem um custo bastante alto”, afirma Medeiros.
Além disso, os quatro economistas concordam em que as maiores fontes de despesas estão na Previdência dos militares. O Governo enviou a reforma separadamente junto com a reestruturação da carreira. Na prática, pouco será economizado com eles. “O problema é que estão reformando o que já vinha sendo reformado nos últimos anos, mas estão deixando de fora o que nunca foi reformado. Do ponto de vista dos privilégios, o problema dos militares é muito maior”, afirma Fagnani.
O professor da Unicamp defende, além disso, um empenho maior do Governo Federal para reformar os sistemas de pensão públicos dos Estados e municípios. Suas despesas previdenciárias crescem acima da média, mas ficaram de fora da reforma. O senado voltou a incluí-los na PEC paralela. Caso não seja aprovada, deverão se adequar por conta própria. “Alguns se adequaram às normas de 2003 e outros não. Há questões de paridade e integralidade que são um escândalo”, afirma.
E como atacar o atual desequilíbrio fiscal? Além de reformas pontuais na Previdência que admite fazer, Fagnani levanta dois temas nos quais a esquerda costuma sempre insistir: uma reforma tributária progressiva que atinja as rendas mais altas e o fim dos benefícios fiscais dados a empresas. Significa atacar o problema não só pela via da despesa, mas sobretudo pela via da arrecadação. “É como se a solução tivesse que sair do andar de baixo sempre, não do de cima”.