Míriam Leitão: Perdido no tempo e tempo perdido

Discurso na ONU seria boa hora para construir pontes e afastar temores, mas Bolsonaro preferiu duelar com inimigos imaginários.
Foto: Alan Santos/PR
Foto: Alan Santos/PR

Discurso na ONU seria boa hora para construir pontes e afastar temores, mas Bolsonaro preferiu duelar com inimigos imaginários

O presidente Bolsonaro fez um discurso perdido no tempo e que foi uma perda de tempo. Um discurso na ONU é um momento precioso. Diante de uma plateia global, o que o governante deve se perguntar é como defender os interesses do país e nunca como fazer um acerto de contas individual. Mandar recados para o público interno é natural, mas não faz sentido falar apenas para um gueto ideológico. O agronegócio moderno, que cresceu com os investimentos em ciência e tecnologia, por exemplo, precisava de uma ajuda no esforço para evitar o fechamento dos mercados.

Bolsonaro falou que fechou acordos comerciais. E este é realmente um bom ponto do seu governo, ter concluído as negociações que estavam em andamento. Mas os acordos ainda não são realidade. Precisam ser confirmados pelos parlamentos dos seus países, tanto na União Europeia quanto na EFTA, que reúne Islândia, Liechtenstein, Noruega e Suíça. Diante da crise provocada pelos incêndios na Amazônia, assunto que teve tanta exposição negativa, essa seria uma ótima oportunidade de mostrar empenho em lutar contra o desmatamento. Ele poderia dizer que enviou as Forças Armadas para a região, e que elas de fato encontraram grileiros e madeireiros e que, por isso, houve multa, apreensão e prisão. Foi o que o ministro da Defesa disse ontem, por exemplo, no balanço de um mês da operação na Amazônia.

Isso ajudaria mais do que chamar de “mentirosos” a imprensa, as ONGs, e atacar um velho líder indígena como Raoni. A ideia de que o governo está estimulando o desmatamento e que apoia invasões de terras indígenas poderá levar à não aprovação do acordo pelos parlamentos europeus. Volta-se à estaca zero. Mas mais do que isso, compradores de quaisquer produtos brasileiros, investidores dos grandes fundos institucionais, bancos internacionais, todos podem ter negócios com o Brasil afetados por pressão dos consumidores, dos investidores e da opinião pública. Como grande exportador de produtos agrícolas, não é do interesse do Brasil enfrentar barreiras a esse comércio. Portanto, era o momento de fazer uma inflexão pragmática no discurso.

Todo o longo tempo que Bolsonaro dedicou a travar a batalha contra o “socialismo” foi perdido. Primeiro, porque essa é uma briga de outra era, da Guerra Fria. Segundo, porque essa escolha de adversários é totalmente sem sentido. Cuba é apenas uma pequena ilha, e nós, um país continental. O acordo Mais Médicos já foi desfeito. A Venezuela é um país em escombros. E qual a vantagem de levar à ONU o que houve na América Latina nos anos 1960? E terceiro, e mais importante, hoje partidos socialistas podem entrar e sair do poder, como aconteceu no Chile, por exemplo. Em qualquer país democrático há alternância no poder. Bolsonaro se referiu a um fato inexistente: “um Brasil que ressurge depois de estar à beira do socialismo.” Ele se esqueceu que sucedeu ao presidente Michel Temer?

O Brasil é realmente um país rico em biodiversidade, como ele disse. Mas o temor é que seu governo esteja ameaçando essa biodiversidade. As medidas tomadas no passado por governos que ele tanto critica — ele costuma misturar as administrações Fernando Henrique com Lula e Dilma — construíram os marcos regulatórios que tiveram sucesso na redução do desmatamento e criaram as áreas de proteção.

Era hora de construir pontes, mesmo reafirmando seus princípios. A diplomacia tem a oferecer aos governantes uma lista enorme de fórmulas para se dizer a verdade sem criar atritos toscos. Afirmar que o colonialismo não pode voltar à ONU, para criticar a França, é uma demonstração de falta de autoestima, como se o Brasil estivesse sob essa ameaça ainda hoje sendo uma nação da dimensão e da força que é.

Toda a parte indígena foi equivocada. É até difícil listar os erros. Falar que tem ouro, diamante, terras raras, urânio e, claro, nióbio em terras indígenas parece convite a garimpeiros. Falar que os territórios são enormes e os índios, poucos, reforça os temores de invasão das terras. Falar que “Raoni não tem mais o monopólio” diante da enorme diversidade de povos e lideranças indígenas que o Brasil sempre teve é desconcertante.

Bolsonaro estava ali como presidente dos brasileiros para representar um país, e não como um candidato às vésperas das eleições duelando com supostos adversários. O mundo não dá ouvidos a brigas paroquiais.

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