Civilizado Macri foi emparedado. Kirchner é rainha dos bárbaros. Argentina precisa de um estadista
Aperto o play do Libertango de Piazzola, porque é inevitável falar sobre a Argentina, um país dividido por Domingo Faustino Sarmiento entre civilizados e bárbaros no seu livro Civilização e Barbárie de 1845. Estava em Buenos Aires a primeira vez que ouvi falar em Juan Facundo Quiroga, por quem Sarmiento era fascinado. Um repórter meu amigo contou que o então presidente Carlos Menem se inspirara em Quiroga ao decidir cultivar suas célebres costeletas. Ambos governaram a província de La Rioja, no pé dos Andes, fronteira com o Chile, famosa pela carne e vinhos.
Inimigo político de Quiroga, Sarmiento escreveu a biografia do caudilho mais amado da Argentina, el Tigre de Llanos, corajoso, violento, temido e assassinado numa emboscada aos 46 anos. Seu livro narra a história da formação do país a partir de 1810, quando a Espanha, invadida e humilhada por Napoleão, perdeu o controle dos vice-reinados do Prata. A Argentina de Sarmiento nasce dividida entre bárbaros e civilizados, os primeiros representados pelos caudilhos, gaúchos e nativos e os segundos por uma elite de formação europeia e simpatizante dos Estados Unidos. Os bárbaros queriam uma federação; os civilizados um país unitário.
Passados 174 anos, Civilização e Barbárie continua sendo uma referência para entender a Argentina e seu povo. Sarmiento governou a província de San José, foi embaixador nos Estados Unidos e presidente entre 1868 e 1874 pelo Partido Liberal, logo transformado em Partido Autonomista Nacional (PAN). Como bom civilizado, investiu pesado em educação, transportes e guerreou contra o Paraguai ao lado do Brasil e Uruguai. Criou as bases para o surgimento de uma Argentina rica, que em 1913 inaugurou em Buenos Aires a primeira linha do metrô, chamado de subte pelos portenhos.
Em 1930, o reinado do PAN foi interrompido quando um general bárbaro chamado José Felix Uriburu virou a mesa e instalou uma ditadura. Pouco mais de um ano depois o poder passou para as mãos de outro general bárbaro, Agustín Pedro Justo, e nelas permaneceu por seis anos. Até 1946, quando Juan Domingo Perón chegou ao poder, o país viveu uma sucessão de governos fracos e fugazes.
Perón ficou uma década na cadeira. Um caudilho moderno, nem por isso menos bárbaro aos olhos dos civilizados. Não liderava uma massa armada como Quiroga, mas um exército de pobres surgido na decadência econômica pós 1930, quando política e caridade se misturaram e o sindicalismo entrou na rota da ascensão social e política. Depois de Perón veio o dilúvio numa sucessão de governos frágeis e curtos até ele voltar ao poder em 1973, morrer menos de um ano depois e a Argentina cair no buraco negro de uma ditadura terrivelmente bárbara. A democracia voltou a bordo do governo do civilizado Raúl Alfonsín, sucedido por Carlos Menen do Partido Justicialista, o esperto riojano bárbaro de costeletas que fincou as bases para a hegemonia peronista em vigor e sovada por sindicatos fortes, movimentos sociais atuantes e políticos maleáveis.
O que estamos assistindo neste momento é o civilizado Mauricio Macri ser emparedado por Cristina Kirchner, rainha dos bárbaros e comandante de uma fantástica máquina eleitoral. Antes dele, outro civilizado, Fernando de lá Rúa, não conseguiu governar e o poder voltou para as mãos dos peronistas. Desde a redemocratização nenhum civilizado terminou o mandato. Alfonsín jogou a toalha faltando sete meses e De La Rúa ficou 2 anos e 10 dias. Macri tem sido acusado de muita coisa desde que as prévias deram uma vantagem de 15 pontos para Alberto Fernandez e Cristina Kirchner. Inclusive ser um filhinho de papai civilizado demais.
Este país que nasceu dividido entre uma elite soberbamente civilizada e os caudilhos bárbaros capazes das maiores ousadias, nunca precisou tanto de um pacto, de um entendimento capaz de neutralizar estas diferenças transformadas no maior ingrediente do atraso e da crônica falta de rumo político e econômico. A Argentina necessita de uma mercadoria cada vez mais escassa nos 5 continentes: um estadista. Os estadistas são antes de tudo construtores de nações e viabilizam o entendimento, como fez Adolfo Suarez ao costurar o pacto que mudou para sempre e para melhor a história da Espanha. Os argentinos precisam se libertar deste ciclo vicioso iniciado em 1930 e fazer as pazes com eles mesmos, tornar os civilizados um pouco mais bárbaros e os bárbaros um pouco mais civilizados.