Doria faz contraponto implícito a Bolsonaro
Em um elegante apartamento no Itaim Bibi, o governador de São Paulo, João Doria, fez uma profissão de fé: “Não sou de esquerda e nem de direita. Minha posição é a de centro e de respeito ao diálogo.” Entre os comensais reunidos pelo advogado Fernando José da Costa, deve-se supor, não havia ninguém com a necessidade de ser convencido. Mas aquele não era um discurso aos convertidos. Havia a presença de jornalistas, várias vezes ressaltada pelo tucano em sua fala. O governador portanto sabia que se dirigia para um público maior.
Quem procurar nas declarações de Doria uma contraposição clara ao presidente Jair Bolsonaro terá dificuldade de encontrar. O governador parece querer que seus ouvintes tirem as conclusões por si. Quando realça a importância do diálogo e de não “perder tempo com bobagem”, arremata a frase com um sorriso, faz uma pausa, e em seguida a ressalva, direcionada aos jornalistas. “Isto não é indireta pra ninguém”, afirmou. Precisa ser mais claro?
Do mesmo modo não há referências diretas a projeto presidencial em 2022. Nem precisaria, porque o cargo de governador de São Paulo fala por si. Ressalvado o período militar, todos os governadores de São Paulo foram presidenciáveis nos últimos 64 anos.
Ao dizer que quer ocupar o centro, Doria tenta aglutinar a oposição a um inimigo declarado, que é a esquerda; e um oculto, o bolsonarismo. O antagonismo à esquerda é óbvio: Doria e seus operadores partem da premissa de que o petismo está muito longe de ter se esgotado, mesmo em São Paulo. Ser o contraponto ao petismo continua a ser um ativo importante. Já a negação da direita é o mais intrigante.
Doria poderia assumir a vestimenta da direita democrática, que opera pela redução do tamanho do Estado e por bandeiras conservadoras preservando a institucionalidade. Não é essa a opção que ele faz no momento. Não podendo mais se apresentar com a roupagem de gestor, e não de político, como fez em 2016, o patrono do movimento “Cansei”, iniciativa empresarial pioneira em entoar o “Fora Lula”, na década passada, faz uma aposta contra a polarização.
É como se o governador dissesse que, em algum momento, parte do contingente antipetista vai se sentir exausto com a gritaria. Aparentemente, o governador recebe informações de que há alguma notícia ruim se desenhando contra o projeto de poder bolsonarista.
A movimentação do governador não passou despercebida nas redes sociais. Aumentou muito o bombardeio contra o tucano que parte das milícias digitais do bolsonarismo.
Doria se prepara para um cenário em que talvez lhe convenha migrar para a oposição ao governo federal, como modo de suplantá-lo nas urnas em 2022, demonstrando algum aprendizado de seus erros nos anos recentes.
É visível a mudança de estilo entre o governador e o Doria prefeito de São Paulo entre 2017 e 2018. Não há mais o afã de correr o Brasil, em uma evidente campanha antecipada. Nem demissões de secretários pelas redes sociais, nem farinata. Há mais trabalho em silêncio, de longa maturação. No jantar de quarta-feira, Doria citou dois dos quais se orgulha: a reversão do fechamento das fábricas da General Motors, processo que demorou três meses; e o da remoção de lideranças do PCC para presídios fora do Estado.
A fraqueza estrutural de Doria está na baixa capacidade de agregar fora de seu habitat. Seu nome parece despertar pouco entusiasmo no DEM. Não conta com demonstrações de simpatia de nenhum cardeal do PSDB, a começar dos que já foram candidatos a presidente pela sigla, incluindo Fernando Henrique Cardoso.
O governador tenta superar esta debilidade com os desiludidos do bolsonarismo. Primeiro o empresário Paulo Marinho, no Rio de Janeiro, o que atraiu o ex-ministro Gustavo Bebianno. Agora aproxima-se do deputado Alexandre Frota. Por outro lado, está de olho grande nos parlamentares do PSB e do PDT que correm risco de expulsão por terem votado contra a reforma da Previdência. Ainda é pouco.
Argentina
É curiosa a atuação internacional do governo Bolsonaro. O presidente resolveu entrar no debate político argentino, como se fosse capaz de influenciar o resultado eleitoral daquele país. Fosse outro tempo, as ofensas que dirige ao favorito Alberto Fernández teriam peso, sem dúvida, para fortalecer ainda mais a tendência de vitória peronista.
Outra era a época, outros os protagonistas, quando em 1946 o então embaixador americano em Buenos Aires, Spruille Braden, atacou o mais forte candidato na eleição argentina que se avizinhava. O agredido capitalizou o episódio e a disjuntiva “Braden ou Perón” foi importante para o triunfo do caudilho.
Bolsonaro age como se fosse chefe de uma potência imperialista, quando não é. Um acordo patrocinado por ele em termos leoninos sobre o uso da energia de Itaipu quase derrubou o governo do Paraguai, mas na Argentina a história é outra. A direita é diminuta. Na recente eleição primária daquele país, o economista ultraliberal José Luiz Espert ficou com 2% e Alejandro Biondini, quase um neonazista, não passou de 0,2%. A vocação argentina para afundar no caos, contudo, é grande, e é contra esta tendência que a elite política daquele país se movimentou nos últimos dias.
O presidente Mauricio Macri nada tem a ver com Bolsonaro, além do fato de receber seu insólito apoio na disputa. Depois da derrota nas eleições primárias, tomou a iniciativa de ligar para Fernández e estabelecer um pacto de governabilidade. Macri quer concluir seu governo em paz. Fernández, chegar ao poder sem que desperte no mercado e na sociedade um pânico desestabilizador.
O “pacto do medo”, como o chamou o jornal “La Nación”, “colocou a política argentina no grau de civilização e cultura que a economia necessita para começar a normalizar-se”, conforme registrou o colunista Joaquín Morales Solá. Macri gerencia uma falência econômica de gigantescas proporções, panorama que felizmente não é o caso brasileiro. Na política, desarma uma bomba. Ou pelo menos tenta.